Na Igreja Ocidental
“O Rosário”, como diz o Breviário Romano, “é uma certa forma de oração na qual nós recitamos quinze dezenas de Ave Marias com um Pai Nosso entre cada dez, enquanto a cada uma dessas dezenas nós recordamos sucessivamente em piedosa meditação um dos mistérios de nossa Redenção“. A mesma lição para a Festa do Santo Rosário nos informa que quando a heresia albigense estava devastando a província de Toulouse, S. Domingos suplicou seriamente pela ajuda de Nossa Senhora e foi instruído por ela, assim diz a tradição, a pregar o Rosário entre as pessoas como um antídoto para a heresia e o pecado. A partir daquele momento esta maneira de oração foi “mais maravilhosamente publicada amplamente e desenvolvida [promulgari augerique coepit] por S. Domingos a quem diferentes Supremos Pontífices em várias eras passadas em suas cartas apostólicas declararam ser o instituidor e autor desta mesma devoção“. Que muitos papas o tenham dito é indubitavelmente verdade, e dentre o restante nós temos uma série de encíclicas, começando em 1883, emitida pelo Papa Leão XIII, que, enquanto recomendava esta devoção aos fiéis nos termos mais sinceros, assumiu a instituição do Rosário por S. Domingos como um fato historicamente estabelecido. Dos frutos notáveis desta devoção e dos extraordinários favores que foram concedidos ao mundo, conforme é piamente crido, através deste meio, algumas coisas serão contadas dentro dos artigos FESTA DO ROSÁRIO e CONFRARIAS DO ROSÁRIO. Nós iremos nos resumir aqui à controvertida questão de sua história, uma questão que tanto em meados do século XVIII e novamente em anos recentes tem atraído muita atenção.
Comecemos com certos fatos que não serão contestados. É toleravelmente óbvio que sempre que qualquer oração tenha que ser repetida um grande número de vezes recorrentemente é comum se precisar de algum aparato mecânico menos problemático para contar que usar apenas os dedos. Em quase todos os países, então, nos deparamos com algo da natureza de um contador de orações ou rosário de contas. Mesmo na antiga Nínive uma escultura foi encontrada assim descrita por Lavard em seu “Monumentos” (I, plate 7): “Duas mulheres aladas paradas diante da árvore sagrada em atitude de oração; elas trazem a mão direita estendida e seguram na esquerda uma grinalda ou rosário”. Seja o que isso for, é certo que entre os maometanos o Tasbih ou colar de contas, consistindo de 33, 66, ou 99 contas, e usado para contar devotamente os nomes de Allah, tem estado em uso por muitos séculos. Marco Polo, visitando o Rei de Malabar no século XIII, descobriu para a sua surpresa que aquele monarca empregava um rosário de 104 (? 108) pedras preciosas para contar suas orações. S. Francisco Xavier e seus companheiros ficaram igualmente admirados de ver que rosários eram universalmente familiares aos budistas do Japão. Entre os monges da Igreja Grega nós ouvimos falar do kombologion, ou komboschoinion, um cordão com uma centena de nós usados para contar genuflexões e sinais da cruz. Da mesma forma, ao lado das múmia de um cristão asceta, Thaias, do século IV, recentemente desenterrado em Antinöe no Egito, foi encontrado um tipo de tabuleiro de cribbage com buracos, que geralmente era tido como um aparato para contar orações, do qual Paladio e outras autoridades da antiguidade nos deixaram relatos. Um certo Paulo, o Eremita, no século IV, tinha imposto a si mesmo a tarefa de repetir trezentas orações, de acordo com uma forma definida, todos os dias. Para fazê-lo, ele reunia trezentos seixos e arremessava uma fora cada vez que uma oração era finalizada (Paladio, Hist. Laus., xx; Butler, II, 63). É provável que outros ascetas que também contavam suas orações na base das centenas adotaram algum expediente similar. (Cf. “Vita S. Godrici”, cviii.) De fato quando nós encontramos um privilégio papal endereçado aos monges de S. Apolinário em Classe requerendo deles, em gratidão pelos benefícios do papa, recitar o Kyrie eleison trezentas vezes duas vezes por dia (ver o privilégio de Adriano I, 782 d.C., em Jaffe-Löwenfeld, n. 2437), é de se supor que algum dispositivo de contagem quase que necessariamente deve ter sido usado para este propósito.
Porém havia outras orações a serem contadas mais intimamente ligadas com o Rosário que Kyrie eleisons. Desde cedo entre as ordens monásticas se estabeleceu a prática de não apenas oferecer missas, mas de recitar orações como um sufrágio por seus irmãos falecidos. Para este propósito a recitação privada dos 150 salmos, ou de 50 salmos, a terça parte, era constantemente imposta. Já em 800 d.C. nós aprendemos do pacto entre S. Galo e Reichenau (“Mon. Germ. Hist.: Confrat.”, Piper, 140) que para cada irmão falecido todos os padres deveriam rezar uma missa e também cinquenta salmos. Uma escritura em Kemble (Cod. Dipl., I, 290) prescrevia que cada monge deveria cantar duas cinquentas (twa fiftig) pelas almas de certos benfeitores, enquanto cada padre deveria cantar duas missas e cada diácono ler duas Paixões. Mas com o passar do tempo, e com os conversi, ou irmãos leigos, a maioria deles praticamente iletrados, se tornando distintos dos monges do coro, sentiu-se que se deveria requerer que eles substituíssem alguma forma simples de oração no lugar dos salmos aos quais seus irmãos mais educados eram obrigados pela regra. Assim nós lemos nos “Antigos Costumes de Cluny”, colecionados por Udalrio em 1096, que quando a morte de qualquer irmão à distância era anunciada, cada padre deveria oferecer uma missa, e cada não-padre deveria ou rezar cinquenta salmos ou repetir cinquenta vezes o Paternoster (“quicunque sacerdos est cantet missam pro eo, et qui non est sacerdos quinquaginta psalmos aut toties orationem dominicam“, P.L., CXLIX, 776). De maneira similar entre os Cavaleiros Templários, cuja regra data de por volta de 1128, aos cavaleiros que não podiam atender ao coro era requerido que rezasse a Oração do Senhor 57 vezes ao todo e quando da morte de qualquer um dos irmãos eles deveriam rezar o Pater Noster uma centena de vezes por uma semana.
Para contá-los com precisão há todas as razões para acreditar que já nos séculos XI e XII tinha surgido uma prática de usar seixos, sementes, ou discos de ossos presos em uma corda. De todo modo é certo que a Condessa Godiva de Coventry (c. 1075) deixou por vontade à estátua de Nossa Senhora em um certo mosteiro “o aro de pedras preciosas que ela trançou em um cordão de modo que dedilhando por elas uma a uma ela pudesse contar suas orações com exatidão” (Malmesbury, “Gesta Pont.”, Rolls Series 311). Um outro exemplo parece ocorrer no caso de Sta. Rosália (1160 d.C.), em cujo túmulo fios similares de contas foram descobertos. Ainda mais importante é o fato de que tais fios de contas foram conhecidos por toda a Idade Média — e em algumas línguas continentais são conhecidas até hoje — como “Paternosters” (n.d.t.: “padre-nossos” ou “pai-nossos”). As evidências disso são esmagadoras e vêm de cada parte da Europa. Já no século XIII os fabricantes destes artigos, que eram conhecidos como “paternosterers”, quase em todos os lugares formavam uma renomada guilda de artesãos de considerável importância. O “Livre des métiers” de Stephen Boyleau, por exemplo, fornece informação completa a respeito das quatro guildas de patenôtriers em Paris no ano de 1268, enquanto a Paternoster Row em Londres ainda preserva a memória da rua na qual seus companheiros artesãos ingleses se reuniam. Portanto a dedução óbvia é que um dispositivo que foi persistentemente chamado de “Paternoster”, ou em latim fila de paternoster, numeralia de paternoster, e por aí vai, foi, pelo menos originalmente, desenvolvido para contar Pai Nossos. Esta inferência, extraída e ilustrada com muito conhecimento pelo Padre T. Esser, O.P., em 1897, se tornou uma certeza prática quando ele recordou que foi apenas em meados do século XII que a Ave Maria passou a ser usada no geral como uma fórmula de devoção. É moralmente impossível que o aro de joias de Lady Godiva tenha sido destinado a contar Ave Marias. Por isso não pode haver dúvida de que os cordões de contas de orações foram chamados de “paternosters” porque por um longo tempo eles eram empregados principalmente para contar repetições da Oração do Senhor.
Quando, contudo, a Ave Maria passou a ser usada, parece que desde o início a consciência de que ela era por sua própria natureza uma saudação mais que uma oração induziu um costume de repeti-la várias vezes seguidamente, acompanhadas por genuflexões ou algum outro ato exterior de reverência. Assim como ocorre nos dias de hoje nos disparos de saudações, ou nos aplausos dados a uma exibição em público, ou nas rodadas de vivas evocadas entre estudantes nas chegadas e partidas, do mesmo modo então a honra rendida por tais saudações era medida em números e continuação. Além disso, desde a recitação dos Salmos dividida em grupos de cinquenta foi, como inúmeros documentos atestam, a forma favorita de devoção para religiosos e pessoas instruídas, então aqueles que eram humildes ou muito ocupados amavam, pela repetição de cinquenta, uma centena, ou de cento e cinquenta saudações de Nossa Senhora, sentir que eles estavam imitando a prática dos mais exaltados servos de Deus. Em todo caso é certo que no decurso do século XII e antes do nascimento de S. Domingos, a prática de recitar 50 ou 150 Ave Marias se tornou bastante comum. A evidência mais conclusiva disto é oferecida pelas “Mary-legends”, ou histórias de Nossa Senhora, que alcançou ampla circulação àquela época. A história de Eulalia, em particular, segundo a qual a uma devota da Virgem Maria que havia sido ordenada a rezar cento e cinquenta Aves foi proposto por ela a rezar apenas cinquenta, mas mais devagar, foi demonstrada por Mussafia (Marien-legenden, Pts I, ii) como sendo inquestionavelmente antiga. Não menos conclusivo é o relato dado de Sto. Alberto (m. 1140) por seu biógrafo contemporâneo, que nos conta: “Cem vezes por dia ele dobrou seus joelhos, e cinquenta vezes ele se prostrou levantando seu corpo novamente pelos dedos das mãos e pés, enquanto repetia a cada genuflexão: ‘Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre'”. Esta era a versão completa da Ave Maria recitada então, e o fato de todas as palavras terem sido escritas implica que a fórmula ainda não tinha se tornado universalmente conhecida. Não menos notável é o relato de um exercício devocional similar que aparece nos manuscritos de Corpus Christi do Ancren Riwle. Este texto, declarado por Kölbing como tendo sido escrito em meados do século XII (Englische Studien, 1885, P. 116), em todo caso dificilmente é mais antigo que 1200. A passagem em questão dá orientações de como cinquenta Aves devem ser rezadas divididas em conjuntos de dez, com prostrações e outros gestos de reverência. (Ver The Month, julho de 1903). Quando nós encontramos tais exercícios recomendados a um pequeno grupo de anacoretas dum canto da Inglaterra, vinte anos antes de qualquer fundação dominicana ter sido feita naquele país, parece difícil de resistir à conclusão de que o costume de recitar cinquenta ou cento e cinquenta Aves tinha se tornado familiar, independentemente, e até antes, da pregação de S. Domingos. Por outro lado, a prática de meditar sobre certos mistérios definitivos, que foi corretamente descrito como a justa essência da devoção do Rosário, parece ter apenas surgido muito depois da data da morte de S. Domingos. É difícil provar uma negativa, mas o Padre T. Esser, O.P., demonstrou (no periódico “Der Katholik”, de Mainz, out., nov., dez. de 1897) que a introdução desta meditação durante a recitação das Aves era corretamente atribuída a um certo cartuxo, Dominic da Prússia. É em todo caso certo que no final do século XV a máxima possível variação dos métodos de meditação prevaleceu, e que os quinze mistérios agora normalmente aceitos não foram uniformemente aderidos mesmo pelos próprios dominicanos. (Ver Schmitz, “Rosenkranzgebet”, p. 74; Esser in “Der Katholik for 1904-6.) Resumindo, nós temos evidências positivas de que tanto a invenção das contas como um aparato para contar e também a prática de repetir cento e cinquenta Aves não pode ser atribuída a S. Domingos, porque elas são ambas notoriamente mais velhas que o seu tempo. Além disso, nós estamos certos de que a meditação sobre os mistérios não foi introduzida até dois séculos após a sua morte. O quê então, somos levados a perguntar, restou daquilo que S. Domingos pode ser chamado de autor?
Estas razões positivas para desacreditar da tradição atual pode em certa medida ser ignoradas como refinamentos arqueológicos, se houver qualquer evidência satisfatória que mostre que S. Domingos tenha identificado a si mesmo com o Rosário pré-existente e tenha se tornado seu apóstolo. Porém aqui nós nos encontramos com um absoluto silêncio. Dos oito ou nove antigos “Vidas dos santos”, nenhum faz a mais remota alusão ao Rosário. As testemunhas que deram evidência na causa da sua canonização são igualmente reticentes. Na grande coleção de documentos acumulados pelos Padres Balme e Lelaidier, O.P., em seu “Cartulaire de St. Dominique” a questão é solenemente ignorada. As antigas constituições de diferentes províncias da ordem foram examinadas, e muitas delas impressas, mas ninguém encontrou qualquer referência a esta devoção. Nós possuímos centenas, e mesmo milhares, de manuscritos contendo tratados devocionais, sermões, crônicas, biografias de santos, etc., escritas pelos Freis Pregadores entre 1220 e 1450; mas nenhuma passagem verificável foi ainda apresentada que fale do Rosário como instituído por S. Domingos o que até mesmo faça muito da devoção como alguma especialmente cara a seus filhos. As cartas e outros atos dos conventos dominicanos para homens e mulheres, como M. Jean Guiraud apontou com ênfase em sua edição do Cartulaire of La Prouille (I, cccxxviii), são igualmente silentes. Nem nós encontramos qualquer sugestão de uma conexão entre S. Domingos e o rosário nas pinturas e esculturas destes dois séculos e meio. Mesmo o túmulo de S. Domingos em Bolonha e os inúmeros afrescos de Fra Angelico representando os irmãos de sua ordem ignoram o rosário completamente.
Impressionados por esta conspiração de silêncio, os bolandistas, ao tentar traçar até a sua fonte a origem da tradição atual, descobriram que todas as pistas convergiam para um ponto, a pregação do dominicano Alan de Rupe por volta dos anos 1470-75. Ele que indubitavelmente fora o primeiro a sugerir a ideia de que a devoção do “Saltério de Nossa Senhora” (cento e cinquenta Ave Marias) tivesse sido instituída ou revivida por S. Domingos. Alan era um homem muito sério e devoto, mas, como as autoridades mais altas admitem, era cheio de delírios, e baseava suas revelações no testemunho imaginário de escritores que nunca existiram (ver Quétif e Echard, “Scriptores O.P.”, 1, 849). Sua pregação, entretanto, foi atendida com muito sucesso. As Confrarias do Rosário, organizadas por ele e seus colegas em Douai, Colônia, e em todo lugar teve grande voga, e levou à impressão de muitos livros, todos mais ou menos impregnados com as ideias de Alan. Indulgências foram concedidas pelo bom trabalho que era assim feito e os documentos concedendo essas indulgências aceitos e repetidos, como era natural naqueles tempos pouco exigentes, dados históricos que foram inspirados pelos escritos de Alan e que foram submetidos de acordo com a prática corrente pelos promotores das próprias confrarias. Foi desse jeito que a tradição da autoria dominicana cresceu. As primeiras Bulas falam desta autoria com alguma reserva: “Prout in historiis legitur” diz Leão X na primeira de todas, “Pastoris aeterni” 1520; porém muitos dos papas posteriores foram menos cautelosos.
Duas considerações apoiam fortemente a visão da tradição do rosário exposta acima. A primeira é a rendição gradual de quase que cada peça notável que foi em um momento ou outro usada para reivindicar os supostos créditos de S. Domingos. Touron e Alban Butler apelaram às Memórias de um certo Luminosi de Aposa que declarava ter ouvido S. Domingos pregar em Bolonha, mas estas Memórias foram há muito tempo provadas como sendo uma falsificação. Danzas, Von Löe dentre outros colocaram muita importância em um afresco em Muret; porém o afresco não existe agora, e há uma boa razão para acreditar que o rosário uma vez visto no afresco fora pintado em uma data posterior (“The Month” fev. de 1901, p. 179). Mamachi, Esser, Walsh, e Von Löe dentre outros citam alguns alegados versos contemporâneos sobre Domingos em ligação com uma coroa de rosas; o manuscrito original desapareceu, e é certo que os escritores nomeados haviam impresso Dominicus onde Benoist, a única pessoa a ver o manuscriyo, leu Dominus. O famoso testamento de Anthony Sers, que declarava deixar uma herança para a Confraria do Rosário em Palencia em 1221, foi apresentada como uma peã conclusiva do testemunho de Mamachi; porém agora é admitido pelas autoridades dominicanas como sendo uma falsificação (“The Irish Rosary”, jan. de 1901, p. 92). Similarmente, uma suposta referência ao assunto feita por Tomás de Kempis na “Crônica do Monte St. Agnes” é uma pura tolice (“The Month”, fev. de 1901, p. 187). Com isto pode ser notada a mudança de tom observável em trabalhos autorizados de referência recentes. No “Kirchliches Handlexikon” de Munique e na última edição do “Konversationslexikon” de Herder nenhuma tentativa foi feita para defender a tradição que conecta S. Domingos pessoalmente com ao origem do Rosário. Outra consideração que não pode ser desenvolvida é a multidão de lendas conflitantes a respeito da origem desta devoção do “Saltério de Nossa Senhora” que prevaleceu até o final do século XV, bem como a inicial diversidade de práticas na maneira de sua recitação. Estes fatos concordam com a suposição de que ela teve seu surgimento em uma revelação definitiva e foi ciosamente observada desde o início por uma das mais eruditas e influentes ordens religiosas. Nenhuma dúvida pode existir de que a imensa difusão do rosário e suas confrarias nos tempos modernos e a vasta influência do sua prática para o bem são principalmente devidas aos esforços e às orações dos filhos de S. Domingos, porém a evidência histórica serve claramente para mostrar que o seu interesse neste assunto foi apenas despertado nos últimos anos do século XV.
Que o rosário é preeminentemente a oração do povo adaptada tanto para o uso dos mais humildes como dos eruditos é provado não penas pela longa série de elocuções papais pelas quais ele foi recomendado aos fiéis mas pela experiência diária de todos aqueles que estão familiarizados com ele. A objeção feita tão frequentemente contra as suas “repetições vãs” não é sentida senão por aqueles que falharam em perceber como o espírito deste exercício reside inteiramente na meditação dos mistérios fundamentais da nossa fé. Para os iniciados as palavras da saudação angélica formam apenas um tipo de acompanhamento semiconsciente, um bordão que nós podemos comparar com o “Santo, Santo, Santo” dos corais celestiais e certamente não é em si insignificante. Nem pode ser necessário insistir que o mais livre criticismo da origem histórica da devoção, que não envolve qualquer ponto de doutrina, é compatível com uma completa apreciação dos tesouros devocionais que este piedoso exercício traz ao alcance de todos.
A respeito da origem do seu nome, a palavra rosarius significa uma grinalda ou buquê de rosas, e foi não poucas vezes usado em um sentido figurado — p.ex. como título de um livro, para denotar uma antologia ou coleção de extratos. Uma antiga lenda que após ter viajado por toda a Europa penetrou até mesmo na Abissínia relaciona este nome com uma história de Nossa Senhora, que foi vista colhendo botões de rosa dos lábios de um jovem monge quando ele estava recitando Ave Marias e trançando-os em uma guirlanda que ela colocou sobre a sua cabeça. Uma versão métrica alemã desta história ainda existe, datando do século XIII. O nome “Saltério de Nossa Senhora” pode também ser rastreado até o mesmo período. Coroa ou terço sugere a mesma ideia de rosarium. O antigo nome inglês encontrado em Chaucer e em todo lugar era um “par de contas“, no qual a palavra conta originalmente significava orações.
Na Igreja Grega, Católica e cismática
O costume de recitar orações usando um colar com nós ou contas nele a intervalos regulares vem desde os tempos primitivos do cristianismo, e ainda é praticado no Oriente bem como na Igreja Ocidental. Parece ter se originado entre os antigos monges e eremitas que usavam um pedaço de uma pesada corda com nós amarados em intervalos nos quais eles recitavam suas orações mais curtas. Esta forma de rosário ainda é usada entre os monges em várias igrejas gregas, embora arquimandritas e bispos usem uma forma muito ornamentada de rosário com contas caras. O rosário é conferido aos monges gregos como parte de sua investidura com as mandyas ou hábito monástico completo, como o segundo passo na vida monástica, e é chamado de sua “espada espiritual”. Esta forma oriental de rosário é conhecida na Igreja Helênica Grega como kombologion (terço), ou komboschoinion (cordão de nós ou contas), na Igreja Russa como vervitza (corda), chotki (terço), ou liestovka (escada), e na Igreja Romena como matanie (reverência). O primeiro uso do rosário de uma forma geral se deu entre os monges do Oriente. Nosso nome corriqueiro de “contas” (beads) para ele é simplesmente a antiga palavra Saxônica bede (uma oração) que foi transferida para o instrumento usado na récita da oração, enquanto a palavra rosary é um termo igualmente moderno. O intercurso dos povos ocidentais do Rito Latino com aqueles do Rito Oriental no começo das Cruzadas fez com que a prática de recitar orações usando nós ou contas se tornasse amplamente difundida entre os monastérios da Igreja Latina, embora a prática tenha sido observada em algumas instâncias antes desta data. Por outro lado, a recitação do Rosário, como praticado no Ocidente, não se tornou um costume geral nas Igrejas Orientais; lá ainda foi mantida a sua forma original como um exercício de devoção monástico, e é muito pouco conhecido ou praticado entre o laicato, enquanto que mesmo o clero secular raramente o utiliza em suas devoções. Os bispos, entretanto, conservam o rosário, como indicando que eles ascenderam de um estado monástico, ainda que eles estejam no mundo governando suas dioceses.
O rosário utilizado na atual Igreja Ortodoxa Grega — seja na Rússia ou no Oriente — é muito diferente na forma daquele usado na Igreja Latina. O uso de nós de oração ou contas de oração originado do fato de que os monges, de acordo com a regra de S. Basílio, a única regra monástica conhecida do Rito Grego, eram ordenados pelo seu fundador a rezar sem cessar” (1 Tessalonicenses 5:17; Lucas 1), e como a maioria dos antigos monges era leiga, envolvida geralmente em várias formas de trabalho e em muitos casos sem suficiente instrução para ler as lições prescritas, salmos, e orações do ofício diário, o rosário era usado por eles como uma forma de continuamente recitar suas orações. Ao começo e ao final de cada oração rezada pelo monge em cada nó ou conta ele fazia a “grande reverência” (he megale metanoia), se inclinando para o chão, de modo que a recitação do rosário é geralmente conhecida como uma metania. O rosário utilizado entre os gregos da Grécia, Turquia, e do Oriente usualmente consiste de cem contas sem qualquer distinção de grandes ou pequenas, enquanto o Velho Rosário Eslavo, ou rosário Russo, geralmente consiste de 103 contas, separadas em seções irregulares por quatro grandes contas, de um jeito em que a primeira conta grande é seguida por 17 pequenas, a segunda conta grande por 33 pequenas, a terceira por 40 pequenas, e a quarta por 12 pequenas, com uma conta adicional acrescentada ao final. As duas pontas do rosário russo são geralmente unidas por uma curta distância, com isso as linhas de contas correm em paralelo (daí o nome escada usado para o rosário), e elas terminam com um ornamento triangular normalmente adornado com um tassel ou outro finial, correspondendo à cruz ou medalha usados em um rosário latino.
O uso do rosário grego está prescrito na Regra 87 do “Nomocanon”, onde diz: “O rosário deve ter uma centena [a regra russa diz 103] contas; e sobre cada conta a oração prescrita deve ser recitada”. A fórmula usual desta oração prescrita para percorrer o rosário é a seguinte: “Ó Senhor Jesus Cristo, Filho e Palavra do Deus vivo, através das intercessões de vossa imaculada Mãe [tes panachrantou sou Metros] e de todos os vossos Santos, tende misericórdia e salvai-nos. Se, porém, o rosário for rezado como um exercício penitencial, a oração então será: Ó Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende misericórdia de mim porque sou um pecador. O rosário russo é dividido pelas quatro grandes contas para representar as diferentes partes do Ofício canônico que a récita do rosário substitui, enquanto as quatro grandes contas em si representam os quatro evangelistas. Nos monastérios do Monte Athos, onde a regra mais severa é observada, de oitenta a cem rosários são recitados diariamente por cada monge. Nos monastérios russos o rosário é usualmente rezado cinco vezes por dia, enquanto a récita das “grandes reverências” são reduzidas a dez, o restante sendo simplesmente sessenta “pequenas reverências” (inclinando a cabeça até não mais do que a cintura) e sessenta recitações da fórmula penitencial da oração prescrita.
Dentre os uniatas gregos o rosário é de pouco uso pelo laicato. Os monges basilianos fazem uso dele no estilo oriental que acabamos de descrever e em muitos casos o fazem no estilo romano em alguns monastérios. A vida mais ativa prescrita para eles para seguir o exemplo dos monges latinos deixa pouco tempo para a recitação do rosário de acordo com a forma oriental, enquanto a leitura e recitação do Ofício durante as Horas canônicas cumprem a obrigação monástica original e assim não requer o rosário. Ultimamente os melquitas e os Ítalo-Gregos adotaram em muitos lugares entre o seu laicato uma forma daquela usada entre o laicato do Rito Romano, mas o seu uso está longe de ser geral. Os católicos gregos rutenianos e romenos não o usam entre o laicato, mas o preservam principalmente para o clero monástico, apesar de recentemente em algumas partes da Galícia o seu uso pelos leigos tenha sido ocasionalmente introduzido e é considerado como uma prática latinizante. Pode ser dito que entre os gregos em geral o uso do rosário é considerado como um exercício religioso peculiar à vida monástica; e onde quer que entre os uniatas gregos o uso pelos leigos tenha sido introduzido, trata-se de uma imitação da prática romana. A esse respeito ele nunca foi popularizado entre os leigos dos povos, que permanecem fortemente ligados ao seu venerável Rito oriental.