Filêmon

Um cidadão de Colossas, a quem S. Paulo endereçou uma carta privada, a única no Novo Testamento, que recebeu o seu nome. Depreende-se desta epístola que Filêmon era seu amigo íntimo e querido (versículos 1, 13, 17, 22), e que muito provavelmente havia sido convertido por ele (versículo 19) durante a sua longa estadia em Éfeso (Atos 19:26; cf. 18:19), já que o próprio S. Paulo não visitou Colossas (Colossenses 2:1). Rico e nobre, ele possuía escravos; sua casa era um lugar de encontro e culto para os colossenses convertidos (versículo 2); ele era gentil, prestativo e caridoso (versículos 5,7), oferecendo hospitalidade aos seus colegas cristãos (versículo 22). S. Paulo o chama de seu amado colaborador (synergos, versículo 1), de modo que ele deve ter sido aplicado em sua obra em favor do Evangelho, talvez inicialmente em Éfeso e posteriormente em Colossas. Não fica claro se ele foi ordenado ou não. A Tradição o representa como Bispo de Colossas (Const. Apost., VI, 46), e a Menaia de 22 de novembro fala dele como um santo apóstolo que, na companhia de Ápia, Arquipo e Onésimo teria sido martirizado em Colossas durante a primeira grande perseguição no reinado de Nero. No conteúdo da carta dois outros cristãos convertidos, Ápia e Arquipo (Colossenses 4:17) são mencionados; geralmente se acredita que Ápia era a esposa de Filêmon e Arquipo seu filho. S. Paulo, tratando exclusivamente nesta carta do assunto doméstico da fuga de um escravo, Onésimo, considerava ambos profundamente interessados. Arquipo, de acordo com Colossenses 4:17, foi um ministro do Senhor e ocupou um cargo sagrado na Igreja de Colossas ou na vizinha Igreja de Laodicéia.

A Epístola a Filêmon

Autenticidade

O testemunho externo quanto à autoria paulina é considerável e evidente, embora a brevidade e caráter privado desta epístola não favoreça o seu uso e reconhecimento público. O herege Marcião a aceitou em seu “Apostolicon” (Tertuliano, “Adv. Marcion”, V, xxi); Orígenes referiu-se expressamente a ela como paulina (“Hom.”, XIX; “In Jerem.”, II, 1; “Comment in Matt.”, Tract. 33, 34); e é mencionada no Fragmento Muratoriano bem como está contida nas versões siríaca e latina antigas. Eusébio inclui Filêmon entre os homologoumena, ou livros universalmente incontestáveis e recebidos como sagrados. S. Crisóstomo e S. Jerônimo, nos prefácios dos seus comentários sobre a epístola, a defendem contra algumas objeções que não teriam valor crítico nem histórico. O vocabulário (epignosis, paraklesis tacha), a fraseologia, e o estilo são indiscutivelmente e completamente paulinos, e a epístola como um todo emana autoria de S. Paulo. Foi objetado, contudo, que ela contém algumas palavras que jamais foram usadas por Paulo em outros escritos (anapempein, apotinein, achrmstos, epitassein, xenia, oninasthai, prosopheilein). Mas cada carta de S. Paulo contém uma quantidade de apax legomena empregadas de forma inédita, e o vocabulário de todos os autores muda mais ou menos com o tempo, lugar e especialmente o assunto tratado. Não poderíamos esperar o mesmo de S. Paulo, um autor de vitalidade espiritual e vigor mental excepcionais? Renan ecoou a opinião comum dos críticos quando escreveu: “Somente S. Paulo, ao que parece, poderia ter escrito essa pequena obra prima ” (St. Paul, p. xi).

Data e local da escrita

É uma das quatro epístolas do cativeiro compostas por S. Paulo durante seu primeiro aprisionamento em Roma (ver COLOSSENSES; EFÉSIOS; EPÍSTOLA AOS FILIPENSES; Filêmon, 9, 23). Colossenses, Efésios e Filipenses estão intimamente ligadas, tanto que a opinião geral é de que elas foram escritas e despachadas à mesma época, entre 61-63 d.C.. Alguns estudiosos situam a sua escrita em Cesaréia (Atos 23-26: 59-60 d.C.), mas ambas a tradição e evidências internas estão a favor de Roma.

Ocasião e propósito

Onésimo, muito provavelmente um de vários escravos de Filêmon, fugiu e, aparentemente antes de sua fuga, defraudou seu senhor e escapou para Roma, encontrando o refúgio onde Paulo foi condenado a viver sozinho e recebia todos que o procuravam (Atos 28:16, 30). É bem possível que ele tenha visto Paulo quando este acompanhou o seu senhor a Éfeso. Onésimo se tornara filho espiritual de S. Paulo (versículos 9, 10), que o teria retido consigo, visto que na nova e elevada esfera de atribuições cristãs ele poderia realizar o serviço que o seu mestre não poderia fazer pessoalmente. Porém Filêmon tinha um argumento forte: Onésimo, como cristão, estava obrigado a fazer reparação. De acordo com a lei, o senhor de um escravo fugitivo poderia tratá-lo da maneira que quisesse. Quando recapturado, o escravo era geralmente marcado na testa, mutilado, ou forçado a lutar com as feras. Paulo pediu perdão para o ofensor, e com raro tato e máxima delicadeza pediu ao seu senhor que o recebesse gentilmente, como se fosse ao próprio Paulo. Paulo não clamou expressamente que Filêmon deveria emancipar seu escravo-irmão, mas “a palavra emancipação parecia tremular em seus lábios, apesar de jamais ter sido pronunciada” (Lightfoot, “Colossians and Philemon”, Londres, 1892, 389). Nós não sabemos qual foi o resultado do pedido de S. Paulo, mas considera-se que esteja implícito na tradição eclesiástica subsequente, que representa Onésimo como Bispo de Bereia (Constit. Apost., VII, 46).

Argumento

Esta breve carta, escrita para um amigo individual, tem as mesmas divisões que as cartas mais longas: (a) a introdução (versículos 1-7); (b) o corpo da epístola ou a demanda (versículos 8-22); (c) o epílogo (versículos 23-25).

1. Introdução (1-7)

A introdução contém (1) a saudação: Paulo, “prisioneiro de Jesus Cristo, e seu irmão Timóteo” saúdam Filêmon (versículo 1), Ápia, Arquipo, e a igreja que se reúne na casa deles (versículo 2), desejando a eles graça e paz da parte de Deus, nosso Pai e da parte do Senhor Jesus Cristo (versículo 3); (2) a ação de graças pela  e caridade de Filêmon (versículos 4-6), que traz grande alegria e conforto ao apóstolo (versículo 7).

2. Corpo da epístola

A demanda e o apelo em nome do escravo Onésimo. Embora ele pudesse ordenar a Filêmon que este fizesse com Onésimo aquilo que fosse conveniente (versículo 8), pela autoridade do amor de Cristo, Paulo “idoso e agora também um prisioneiro de Jesus Cristo” (versículo 9) suplicou a ele por seu filho espiritual Onésimo, que ele gerou na prisão (versículo 10). Embora ele não tenha sido o que o seu nome implica (útil); agora, porém, ele poderia seria útil a ambos (versículo 11). Paulo o envia novamente e pede a Filêmon que o receba como a seu próprio coração (de Paulo) (versículo 12). Paulo gostaria de conservar Onésimo consigo para que continuasse a assisti-lo na prisão, como o próprio Filêmon faria (versículo 13), mas não quis resolver nada sem o consentimento de Filêmon, para que a bondade de Filêmon pudesse se manifestar de “livre vontade” (versículo 14). “Talvez, por desígnio da Providência, ele tenha se apartado de ti por algum tempo, para que o pudesses reaver para sempre” (versículo 15), já não como um escravo, mas bem mais do que um escravo, como um irmão caríssimo no Cristo (versículo 16). Portanto, se me tens por amigo na , recebe-o como a mim (versículo 17). Se ele te causou qualquer prejuízo ou está devendo alguma coisa, lança isto em minha conta (versículo 18). Eu, Paulo, escrevo de próprio punho. Para não te dizer que tu mesmo te deves inteiramente a mim (eu pagarei a dívida) (versículo 19). Sim, irmão, quisera eu receber de ti esta alegria (sou onaimen) no Senhor, Dá esta alegria ao meu coração, em Cristo! (versículo 20). Eu te escrevi, certo de que me atenderás e sabendo que farás ainda mais do que estou pedindo (versículo 21). Ao mesmo tempo, prepara-me pousada, porque espero, pelas vossas orações ser-vos restituído em breve (versículo 22).

3. Epílogo (23-25)

O epílogo contém (1) saudações da parte de todas as pessoas mencionadas em Colossenses 4 (versículos 23-24), e (2) uma bênção final (versículo 25). Esta epístola breve, terna, elegante e gentil foi muitas vezes comparada a uma bela carta de Plínio o Jovem (Ep. IX, 21) na qual pediu a um amigo seu, Sabiniano, que perdoasse um homem liberto que o ofendera. Como disse Lightfoot (Colossians and Philemon, 383 sq.): “Se se excluir a pureza da fluência, dificilmente haverá qualquer divergência em conceder a palma ao apóstolo cristão“.

Atitude de S. Paulo em face da escravidão

A escravidão foi universal em todas as nações da antiguidade e a própria base econômica das antigas civilizações. Os escravos eram empregados não apenas em todo tipo de trabalho manual e industrial, mas também em muitas funções que requeriam habilidade artística, inteligência e cultura; tais são especialmente o caso de ambas as sociedades grega e romana. O seu número era muito maior que o de cidadãos livres. Na civilização grega os escravos gozavam de melhores condições que na romana; porém mesmo de acordo com o uso e a lei grega, o escravo vivia em total sujeição à vontade do seu mestre, despossuído de direitos, mesmo os do matrimônio. (Ver Wallon, “Hist. de l’Esclavage dans l’Antiquité”, Paris, 1845, 1879; ESCRAVIDÃO.) S. Paulo, sendo judeu, tinha pouco da concepção  pagã da escravidão; a bíblia e a civilização judaica já haviam guiado ele para um mundo mais feliz e humanizado. A bíblia mitigou a escravidão e promulgou uma legislação humanitária a respeito da alforria de escravos; contudo a consciência cristã do apóstolo por si só explica a sua atitude para com Onésimo e a escravidão. Por um lado, S. Paulo aceitava a escravidão como um fato estabelecido, uma instituição social profundamente arraigada que ele não tentou abolir de uma vez só e subitamente; mais ainda: se a religião cristã tivesse tentado violentamente destruir a escravidão pagã, o assalto teria exposto o império romano a uma insurreição servil, a Igreja à hostilidade do poder imperial e os escravos a terríveis represálias. Por outro lado, se S. Paulo não denuncia o erro teórico e inerente da completa escravidão (se essa questão se apresentou à sua mente, ele não a expressou), ele sabia e admitia os seus abusos e malignas possibilidades e oferecia a si próprio para regular e aperfeiçoar as condições existentes. Ele incutiu a tolerância para com os escravos bem como a obediência para com os mestres (Efésios 6:5-9Colossenses 3:224:1Filêmon 8-12, 15, 171 Timóteo 6:1Tito 2:9). Ele ensinou que o escravo cristão é o liberto do Senhor (1 Coríntios 7:22), e vigorosamente proclamou a completa igualdade espiritual do escravo e do homem livre, o amor paternal de Deus, e a irmandade dos homens cristãos:

Porque todos sois filhos de Deus pela  em Cristo Jesus. Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus.
(
Gálatas 3:26-28; cf. Colossenses 3:10-11

Estes princípios fundamentais cristãos foram o fermento que lenta e progressivamente se espalhou por todo o império. Eles abreviaram os abusos da escravidão e finalmente a destruíram (Vincent, “Philippians and Philemon”, Cambridge, 1902, 167).

Fontes

Adicionalmente às obras referidas, consultar Introductions to the New Testament. CATHOLIC: TOUSSAINT in VIGOUROUX, Dict. de la Bible, s. vv. Philemon; Philemon, Epître à; VAN STEENKISTE, Commentarius in Epistolas S. Pauli, XI (Bruges, 1896); ALLARD, Les esclaves chretiens (Paris, 1900); PRAT, La Théologie de S. Paul (Paris, 1908), 384 sq.; NON-CATHOLIC: OLTRAMARE, Commentaire sur les Epitres de S. Paul aux Colossiens, aux Ephesiens et a Philémon (Paris, 1891); VON SODEN, Die Briefe an die Kolosser, Epheser, Philemon in Hand-Commentar zum N.T., ed. HOLTZMANN (Freiburg, 1893); SHAW, The Pauline Epistles (Edinburgh, 1904); WOULE, The Epistles to the Colossians and to Philemon (Cambridge, 1902).