Questões preliminares
O apócrifo Atos de S. Paulo
O professor Schmidt publicou uma cópia fotográfica, uma transcrição, uma tradução alemã, e um comentário sobre um papiro copta composto de aproximadamente 2000 fragmentos, os quais ele havia classificado, justaposto e decifrado ao custo de um trabalho infinito (“Acta Pauli aus der Heidelberger koptischen Papyrushandschrift Nr. 1”, Leipzig, 1904, e “Zusatze” etc., Leipzig, 1905). A maioria dos críticos, sejam católicos (Duchesne, Bardenhewer, Ehrhard etc.), ou protestantes (Zahn, Harnack, Corssen etc.), acreditam que estes são os reais “Acta Pauli”, embora o texto editado por Schmidt, com suas muito numerosas lacunas, representam apenas uma pequena porção da obra original. Esta descoberta modificou as ideias geralmente aceitas a respeito da origem, conteúdo e valor destes Atos apócrifos, e garante a conclusão de que três composições antigas que chegaram até nós formavam uma parte integral do “Acta Pauli”, a saber, o “Acta Pauli et Theclae”, do qual a melhor edição é aquela de Lipsius, (“Acta Apostolorum apocrypha”, Leipzig, 1891, 235-72), um “Martyrium Pauli” preservado em grego e um fragmento do qual também existe em latim (op. cit., 104-17), e uma carta dos Coríntios para Paulo com a resposta deste último, da qual o texto armênio foi preservado (cf. Zahn, “Gesch. des neutest. Kanons”, II, 592-611), e um em latim que foi descoberto por Berger em 1891 (d. Harnack, “Die apokryphen Briefe des Paulus an die Laodicener und Korinther”, Bonn, 1905). Com grande sagacidade Zahn antecipou este resultado com relação aos dois últimos documentos, e a maneira com a qual S. Jerônimo fala do periodoi Pauli et Theclae (Illustrious Men 7) pode ter permitido a mesma suposição com relação ao primeiro.
Outra consequência da descoberta de Schmidt não é menos interessante. Lipsius sustentava — e isto era até agora a opinião comum — que ao lado dos “Atos” católico anteriormente existiu um “Atos de Paulo” gnóstico, mas agora tudo leva a provar que este último nunca existiu. De fato Orígenes citou os “Acta Pauli” duas vezes como um escrito estimado (Comentário sobre João XX.12; De Principiis II.1.3); Eusébio (História Eclesiástica III.3.5 e III.25.4) os coloca dentre os livros em disputa, tais como o “Pastor” de Hermas, o “Apocalipse de Pedro”, a “Epístola de Barnabé”, e os “Ensinamentos dos Apóstolos”. A esticometria do “Codex Claromontanus” (fotografia em Vigouroux, “Dict. de la Bible”, II, 147) os situa entre os livros canônicos. Tertuliano e S. Jerônimo, enquanto apontando o caráter lendário deste escrito, não atacam a sua ortodoxia. O propósito preciso da correspondência de S. Paulo com os Coríntios que formou parte dos “Atos”, era fazer oposição aos gnósticos, Simon e Cleobius. Porém não há razão para admitir a existência de “Atos” heréticos que desde então foram irremediavelmente perdidos, pois todos os detalhes dados pelos autores antigos são verificados nos “Atos” que foram recuperados ou bem computados com eles.
O seguinte é a explicação da confusão: os maniqueístas e os priscilianistas fizeram circular uma coleção de cinco “Atos” apócrifos, quatro deles tendo sido manchados com heresias, e o quinto era o “Atos de Paulo”. O “Acta Pauli”, devido a esta desafortunada associação, recebeu a suspeita de heterodoxia por autores mais recentes como Filástrio (De haeres., 88) e Fócio (Cod., 114). Tertuliano (Sobre o Batismo 17) e S. Jerônimo (Illustrious Men 7) denunciaram o caráter fabuloso dos “Atos” de Paulo apócrifos, e este severo julgamento é amplamente confirmado pelo exame dos fragmentos publicados por Schmidt. É uma obra puramente imaginativa na qual a improbabilidade rivaliza com o absurdo. O autor, que estava familiarizado com os Atos dos Apóstolos canônico, localiza o cenário em lugares realmente visitados por S. Paulo (Antioquia, Icônia, Mira, Perge, Sidônia, Tiro, Éfeso, Corinto, Filipo, Roma), mas quanto ao resto ele deixa a sua fantasia reinar livre. Sua cronologia é absolutamente impossível. Das sessenta e cinco pessoas que ele cita, muito poucos são conhecidos e o papel desempenhado por estes é irreconciliável com as afirmações dos “Atos” canônicos. Resumidamente, se os “Atos” canônicos são verdadeiros os “Atos” apócrifos são falsos. Isto, entretanto, não implica que nenhum dos detalhes tenha fundamento histórico, mas eles devem ser confirmados por uma autoridade independente.
Cronologia
Se nós admitirmos de acordo com a opinião quase unânime dos exegetas de que Atos 15 e Gálatas 2:1-10, se referem ao mesmo fato será visto que um intervalo de dezessete anos — ou pelo menos dezesseis, contando anos incompletos como completados — passados entre a conversão de Paulo e o concílio Apostólico, pois Paulo visitou Jerusalém três anos após a sua conversão (Gálatas 1:18) e retornou depois de quatorze anos para a reunião organizada para tratar da observância da lei (Gálatas 2:1: “Epeita dia dekatessaron eton“). É verdade que alguns autores incluem os três anos antes da primeira visita no total dos quatorze, mas esta explicação parece forçada. Por outro lado, doze ou treze anos passados entre o concílio Apostólico e o fim do cativeiro, já que o cativeiro durou aproximadamente cinco anos (mais de dois anos na Cesareia, Atos 24:27, seis meses viajando, incluindo a breve estadia em Malta, e dois anos em Roma, Atos 28:30); a terceira missão durou não menos de quatro anos e meio (três dos quais foram gastos em Éfeso, Atos 20:31, e um entre a partida de Éfeso e a chegada a Jerusalém, 1 Coríntios 16:8; Atos 20:16 e seis meses pelo menos para a jornada à Galácia, Atos 18:23); enquanto a segunda missão durou não menos que três anos (dezoito meses para Corinto, Atos 18:11 e o restante para a evangelização da Galácia, Macedônia e Atenas, Atos 15:36-17:34). Assim desde a conversão até o fim do primeiro cativeiro nós temos um total de cerca de vinte e nove anos.
Agora, se nós pudermos encontrar um ponto fixo que seja um sincronismo entre um fato na vida de Paulo e um evento certamente datado na história profana, seria fácil reconstruir a cronologia paulina. Infelizmente este mui almejado marco ainda não foi indicado com certeza, a despeito das numerosas tentativas feitas pelos estudiosos, especialmente nos tempos recentes. É interessante notar mesmo as tentativas abortadas, porque a descoberta de uma inscrição ou de uma moeda pode qualquer dia transformar uma data aproximada em um ponto fixo absoluto. Estes são
- o encontro de Paulo com Sérgio Paulo, Procônsul de Chipre, por volta do ano 46 (Atos 13:7)
- o encontro em Corinto com Áquila e Priscila, que foram expulsos de Roma, por volta de 51 (Atos 18:2)
- o encontro com Galião, Procônsul da Acaia, por volta de 53 (Atos 18:12)
- o discurso de Paulo perante o Governador Félix e sua esposa Drusila por volta de 58 (Atos 24:24).
Todos estes eventos, porquanto podem ser-lhes atribuídas datas aproximadas, concordam com a cronologia geral do Apóstolo mas não dão resultados precisos. Três sincronismos, entretanto, parecem sustentar uma base firme:
(1) A ocupação de Damasco pelo etnarca do Rei Aretas e a escapada do Apóstolo três anos após a sua conversão (2 Coríntios 11:32-33; Atos 9:23-26). — moedas damascenas trazendo a efígie de Tibério para o ano 34 são existentes, provando que naquele tempo a cidade pertencia aos romanos. É impossível assumir que Aretas as tenha recebido como um presente de Tibério, porque este último, especialmente em seus últimos anos, era hostil ao Rei dos nabateus a quem Vitélio, Governador da Síria, tinha ordenado atacar (Josefo, “Ant.”, XVIII, v, 13); nem poderia Aretas tê-las tomado à força porque, além da improbabilidade de uma agressão direta contra os romanos, a expedição de Vitélio fora inicialmente dirigida não contra Damasco mas contra Petra. Foi portanto de certa forma plausivelmente conjeturado que Calígula, sujeito como era a tais caprichos, as teria cedido a ele no tempo da sua adesão (10 de março de 37). De fato nada se sabe sobre moedas imperiais de Damasco datando nem de Calígula nem de Cláudio. De acordo com esta hipótese a conversão de São Paulo não aconteceu antes de 34, nem sua escapada de Damasco e sua primeira visita a Jerusalém, de 37.
(2) A morte de Agripa, fome na Judeia, a missão de Paulo e Barnabé em Jerusalém para levar até lá as esmolas da Igreja de Antioquia (Atos 11:27-12:25). — Agripa morreu pouco depois da Páscoa (Atos 12:3, 12:19), quando estava celebrando na Cesareia os festivais solenes em honra do recente retorno de Cláudio da Bretanha, no terceiro ano de seu reinado, que havia começado em 41 (Josefo, “Ant.”, XIX, vii, 2). Estes fatos combinados nos levam para o ano 44, e é precisamente neste ano que Orósio (Hist., vii, 6) situa a grande fome que desolou a a Judeia. Josefo a menciona um pouco depois, sob o procurador Tibério Alexandre (cerca de 46), mas é bastante conhecido que todo o reinado de Cláudio foi caracterizado por colheitas pobres (Suet., “Claudius”, 18) e uma fome generalizada era usualmente precedida por um período mais ou menos prolongado de escassez. É também possível que o alívio enviado em antecipação da fome profetizada por Ágabo (Atos 11:28-29) precedia a aparência de um flagelo ou coincidia com os primeiros sintomas da escassez. Por outro lado, o sincronismo entre a morte de Herodes e a missão de Paulo pode apenas ser aproximado, pois embora os dois fatos estejam intimamente conectados nos Atos, o relato da morte de Agripa pode ser um mero episódio com a intenção de jogar uma luz na situação da Igreja de Jerusalém por volta do tempo da chegada dos delegados de Antioquia. Em todo o caso, 45 parece ser a data mais satisfatória.
(3) A substituição de Félix por Festo dois anos após a prisão de Paulo (Atos 24:27). — Até recentemente os cronologistas comumente fixavam este importante evento no ano 60-61. Harnack, O. Holtzmann e McGiffert sugerem avançá-la quatro ou cinco anos pelas seguintes razões:
(1) No seu “Chronicon”, Eusébio situa a chegada de Festo no segundo ano de Nero (outubro de 55-outubro de 56, ou se, como é afirmado, Eusébio coloca os reinados dos imperadores começando com o setembro após a sua admissão, setembro de 56-setembro de 57). Mas deve-se ter em mente que os cronistas sendo sempre obrigados a dar datas definidas, costumavam adivinhá-las, e pode ser que Eusébio por falta de informação definitiva dividiu em duas partes iguais a completa duração do governo de Félix e Festo.
(2) Josefo afirma (Ant., XX, viii, 9) que Félix tendo sido chamado de volta a Roma e acusado pelos judeus a Nero, deveu a sua segurança apenas a seu irmão Palas que estava então em boa posição. Mas de acordo com Tácito (Annal., XIII, xiv-xv), Palas foi dispensado pouco depois de Britânico celebrar seu décimo quarto aniversário, ou seja, em Janeiro de 55. Estas duas declarações são irreconciliáveis; pois se Palas foi demitido três meses após a acessão de Nero (13 de outubro de 54) ele não teria estado no ápice de seu poder quando seu irmão Félix, convocado da Palestina por ordem de Nero por volta do tempo de Pentecostes, chegou a Roma. Possivelmente Palas, que após a sua dispensa conservou sua riqueza e uma porção da sua influência, visto que ele estipulou que a sua administração não deveria ser submetida a uma investigação, foi capaz de assistir a seu irmão até 62 quando Nero, para obter a posse dos seus bens, o envenenou.
Os defensores de uma data posterior oferecem as seguintes razões:
(1) Dois anos antes da convocação de Félix, Paulo o recordou que ele fora durante muitos anos juiz sobre a nação judaica (Atos 24:10-27). Isto dificilmente significaria menos que seis ou sete anos e como, de acordo com Josefo que concorda com Tácito, Félix fora nomeado procurador da Judeia em 52, o começo do cativeiro cairia em 58 ou 59. É verdade que o argumento perde a sua força se for admitido com vários críticos que Félix antes de ser procurador tinha ocupado uma posição subordinada na Palestina.
(2) Josefo (Ant., XX, viii, 5-8) situa sob Nero tudo que pertença ao governo de Félix, e embora esta longa série de eventos não necessariamente requeira muitos anos é evidente que Josefo considerou o governo de Félix como coincidente com a maior parte do reinado de Nero, que começou em 13 de outubro de 54.
Ao ajustar como a seguir as principais datas da vida de Paulo toda a informação certa ou provável parece ser satisfatoriamente levada em consideração: Conversão, 35; primeira visita a Jerusalém, 37; breve estadia em Tarso, 37-43; apostolado em Antioquia, 43-44; segunda visita a Jerusalém, 44 ou 45; primeira missão, 45-49; terceira visita a Jerusalém, 49 ou 50; segunda missão, 50-53; (1 e 2 Tessalonicenses), 52; quarta visita a Jerusalém, 53; terceira missão, 53-57; (1 e 2 Coríntios; Gálatas), 56; (Romanos), 57; quinta visita a Jerusalém, prisão, 57; chegada a Festo, partida para Roma, 59; cativeiro em Roma, 60-62; (Filêmon; Colossenses; Efésios; Filipenses), 61; segundo período de atividade, 62-66; (1 Timóteo; Tito), segunda prisão, 66; (2 Timóteo), martírio, 67. (Ver Turner, “Cronologia do Novo Testamento” em Hastings, “Dic. da Bíblia” Hönicke, “Die Chronologie des Lebens des Ap. Paulus”, Leipzig, 1903.
Vida e obra de Paulo
Nascimento e educação
Do próprio S. Paulo nós aprendemos que ele nasceu em Tarso na Cilícia (Atos 21:39), de um pai que era um cidadão romano (Atos 22:26-28; cf. 16:37), de uma família na qual a piedade era hereditária (2 Timóteo 1:3) e que era muito ligada às tradições e observâncias farisaicas (Filipenses 3:5-6).
S. Jerônimo relata, com que base é desconhecido, que seus pais eram naturais de Giscala, uma pequena cidade da Galileia e que eles o levaram para Tarso quando Giscala foi capturada pelos romanos (Illustrious Men 5; “In epist. ad Phil.”, 23). Este último detalhe é certamente um anacronismo, mas a origem galileia da família não é de todo improvável.
Como ele pertencia à tribo de Benjamin ele recebeu no tempo da sua circuncisão o nome de Saulo, que devia ser comum naquela tribo em memória do primeiro rei dos judeus (Filipenses 3:5). Como um cidadão romano ele também carregou o nome latino de Paulo. Era muito comum para os judeus daquele tempo ter dois nomes, um hebreu, o outro latino ou grego, entre os quais geralmente havia certa assonância e os quais eram postos juntos exatamente da maneira usada por S. Lucas (Atos 13:9: Saulos ho kai Paulos). Ver nesse ponto Deissmann, “Estudos Bíblicos” (Edinburgo, 1903, 313-17.) Era natural que ao inaugurar seu apostolado entre os gentios Paulo tivesse adotado seu nome romano, especialmente porque o nome Saulo tinha um significado ridículo em grego.
Como cada judeu respeitável tinha que ensinar a seu filho uma profissão, o jovem Saulo aprendeu como fabricar tendas (Atos 18:3) ou inda a fabricar o mohair do qual as tendas eram feitas (cf. Lewin, “Vida de São Paulo”, I, Londres, 1874, 8-9). Ele era ainda muito jovem quando foi enviado a Jerusalém para receber sua educação na escola de Gamaliel (Atos 22:3). Possivelmente alguns membros da sua família residiam na cidade santa; mais tarde aparece uma menção da presença de uma de suas irmãs cujo filho salvou sua vida (Atos 23:16).
Daquele tempo é absolutamente impossível seguí-lo até ele tomar uma parte ativa no martírio de S. Estêvão (Atos 7:58-60; 22:20). Ele foi então qualificado como um jovem rapaz (neanias), mas esta é uma definição muito elástica e pode ser aplicada a um homem entre vinte e quarenta.
Conversão e primeiros trabalhos
Lemos nos Atos of the Apostles três relatos da conversão de S. Paulo (9:1-19; 22:3-21; 26:9-23) apresentando algumas ligeiras diferenças, que não são difíceis de harmonizar que não afetam a base das narrativas, que são perfeitamente idênticas na substância. Ver J. Massie, “A Conversão de S. Paulo” em “O Expositor”, 3a série, X, 1889, 241-62. Sabatier, concordando com a maioria dos críticos independentes, disse bem (L’Apotre Paul, 1896, 42):
Estas diferenças não podem de forma alguma alterar a realidade do fato; seu peso na narrativa é extremamente remoto; elas sequer lidam com as circunstâncias acompanhando o milagre mas com as impressões subjetivas que os companheiros de S. Paulo receberam destas circunstâncias. . . . Basear uma negação do caráter histórico do relato nestas diferenças pareceria portanto um procedimento violento e arbitrário.
Todos os esforços até agora feitos para explicar sem um milagre a aparição de Jesus a Paulo falharam. As explicações naturalísticas são reduzidas a duas: ou Paulo acreditou que realmente tinha visto o Cristo, mas fora vítima de uma alucinação, ou ele acreditou que O vira apenas através de uma visão espiritual, que a tradição, registrada nos Atos dos Apóstolos, mais tarde erroneamente materializou. Renan explicou tudo pela alucinação devido a uma doença provocada por uma combinação de causas morais como a dúvida, o remorso, medo, e de causas físicas como a oftalmia, fadiga, febre, a súbita transição de um deserto tórrido para os jardins frescos de Damasco, talvez uma tempestade súbita acompanhada de raios e trovões. Tudo isto combinado, de acordo com a teoria de Renan, para produzir uma comoção cerebral, um delírio passageiro que Paulo tomou de boa fé por uma aparição do Cristo ressuscitado.
Os outros partidários de uma explicação natural enquanto evitam a palavra alucinação, eventualmente recorrem ao sistema de Renan o qual eles meramente se esforçam para considerar como um pouco menos complicado. Assim Holsten, para quem a visão de Cristo é apenas a conclusão de uma série de silogismos pelos quais Paulo persuadiu a si mesmo de que Cristo havia verdadeiramente ressuscitado. Do mesmo modo Pfleiderer, que porém, faz a imaginação ter um papel mais influente:
Um temperamento nervoso, excitável; uma alma que foi violentamente agitada e partida pelas mais terríveis dúvidas; uma fantasia muito vívida, ocupada com as tristes cenas de perseguição de um lado e do outro pela imagem ideal do Cristo celestial; em adição à proximidade de Damasco com a urgência de uma decisão, a solitária quietude, o calor escaldante e cegador do deserto — de fato tudo se combinou para produzir um daqueles estados extáticos nos quais a almaacredita que vê aquelas imagens e concepções que a agitam violentamente como se fossem fenômenos procedentes do mundo exterior (Lectures on the influence of the Apostle Paul on the development of Christianity, 1897, 43).
Nós citamos um longo trecho das palavras de Pfleiderer porque sua explicação “psicológica” é considerada a melhor já inventada. Prontamente se verá que ela é insuficiente e muito oposta ao relato nos Atos como pelo testemunho expresso do próprio S. Paulo.
- Paulo está certo de ter “visto” o Cristo como também os outros Apóstolos (1 Coríntios 9:1); ele declara que Cristo “apareceu” para ele (1 Coríntios 15:8) como Ele apareceu a Pedro, a Tiago, aos Doze, após Sua Ressurreição.
- Ele sabe que sua conversão não é fruto de sua racionalização ou pensamentos, mas de uma imprevista, súbita e repentina mudança, devido à graça do Todo-poderoso (Gálatas 1:12-15; 1 Coríntios 15:10).
- Ele é erroneamente creditado com dúvidas, perplexidades, temores, remorso, antes de sua conversão. Ele foi parado por Cristo quando sua fúria está no auge (Atos 9:1-2); foi “pelo zelo” que ele perseguiu a Igreja (Filipenses 3:6), e ele obtém a misericórdia porque tinha agido “por ignorância da fé” (1 Timóteo 1:13).
Todas as explicações, psicológicas ou de outro tipo, são inúteis em face destas assertivas definitivas, porque todas supõem que foi a fé de Paulo em Cristo que engendrou a visão, quando de acordo com o testemunho concordante dos Atos e Epístolas foi na verdade a visão de Cristo que engendrou a fé.
Após a sua conversão, seu batismo e sua cura milagrosa Paulo começa a pregar para os judeus (Atos 9:19-20). Posteriormente ele se retira para a Arábia — provavelmente para a região ao sul de Damasco (Gálatas 1:17), sem dúvida menos para pregar que para meditar sobre as Escrituras. No seu retorno a Damasco as intrigas dos judeus o forçam a fugir durante a noite (2 Coríntios 11:32-33; Atos 9:23-25). Ele vai para Jerusalém para ver Pedro (Gálatas 1:18), mas permanece apenas quinze dias, porque as ciladas dos gregos ameaçavam a sua vida. Ele então vai para Tarso e é perdido de vista por cinco ou seis anos (Atos 9:29-30; Gálatas 1:21). Barnabé parte à sua procura e o leva para Antioquia onde por um ano eles trabalharam juntos e seu apostolado foi muito frutuoso (Atos 11:25-26). Juntos também eles foram enviados para Jerusalém para levar esmolas para os irmãos por ocasião da fome profetizada por Ágabo (Atos 11:27-30). Eles parecem não ter encontrado os Apóstolos lá; estes foram dispersados pela perseguição de Herodes.
Carreira apostólica de Paulo
Este período de doze anos (45-57) foi o mais ativo e frutuoso de sua vida. Ele compreende três grandes expedições apostólicas das quais Antioquia foi em cada uma delas o ponto de partida e que invariavelmente terminaram numa visita a Jerusalém.
Primeira missão (Atos 13:1-14:27)
Separados por ordem do Espírito Santo para a evangelização especial dos gentios, Barnabé e Saulo embarcaram para Chipre, pregaram na sinagoga de Salamina, cruzaram a ilha de leste a oeste sem dúvida seguindo a costa sul e chegaram a Pafos, a residência do proconsul Sergius Paulus, onde uma mudança súbita ocorreu. Após a conversão do proconsul romano, Saulo, repentinamente se tornou Paulo, é invariavelmente mencionado antes de Barnabé por S. Lucas e manifestamente assume a liderança da missão a qual Barnabé até então vinha dirigindo.
Os resultados desta mudança ficaram logo evidentes. Paulo, indubitavelmente concluindo que Chipre, com a dependência natural da Síria e Cilícia, abraçaria a fé do Cristo quando estes dois países fossem cristãos, escolhe a Ásia Menor como o terreno para o seu apostolado e navega para Perge na Panfília, oitenta milhas acima da boca de Cestrus. Foi então que João Marcos, primo de Barnabé, desanimado talvez pelos projetos ousados do Apóstolo, abandonou a expedição e retornou a Jerusalém, enquanto Paulo e Barnabé trabalharam sozinhos entre as duras montanhas da Pisídia, que estavam infestadas por bandidos e eram atravessadas por precipícios assustadores. O seu destino era a colônia romana de Antioquia, situada a uma jornada de sete dias de Perge. Ali Paulo falou da vocação de Israel e do envio providencial do Messias, um discurso que S. Lucas reproduziu em grande parte como um exemplo de sua pregação nas sinagogas (Atos 13:16-41). A breve estada dos dois missionários em Antioquia foi longa o bastante para a palavra do Senhor ser publicada por todo o país (Atos 13:49).
Quando por suas intrigas os judeus obtiveram contra eles um decreto de banimento, eles foram para Icônio, três ou quatro dias distante, onde se depararam com a mesma perseguição da parte dos judeus e a mesma ardente acolhida da parte dos gentios. A hostilidade dos judeus os forçou a se refugiarem na colônia romana de Listra, a dezoito milhas de distância. Lá os judeus de Antioquia e Icônio armaram ciladas para Paulo e o apedrejaram deixando-o para morrer, mas novamente ele consegue escapar e desta vez buscou refúgio em Derbe, situada a cerca de quarenta milhas afastada da fronteira da Província da Galácia. Ao terminarem seu circuito, os missionários retraçaram seus passos de modo a visitar seus neófitos, sacerdotes ordenados em cada Igreja fundada por eles a tanto custo, e assim alcançaram Perge onde se detiveram para pregar o Evangelho, talvez enquanto esperavam uma oportunidade de embarcar para a Atália, um porto a doze milhas de distância. No seu retorno a Antioquia na Síria após uma ausência de pelo menos três anos, eles foram recebidos com tremenda alegria e ação de graças, porque Deus havia aberto a porta da fé para os gentios.
O problema do status dos gentios na Igreja agora se fez sentir em toda a sua agudeza. Alguns judeo-cristãos vindos de Jerusalém clamavam que os gentios deviam ser submetidos à circuncisão e tratados como os judeus tratavam os prosélitos. Contra isto Paulo e Barnabé protestaram e foi decidido que uma reunião deveria ser realizada em Jerusalém de modo a resolver a questão. Nesta assembléia Paulo e Barnabés representaram a comunidade de Antioquia. Pedro suplicou a liberdade dos gentios; Tiago o apoiou, ao mesmo tempo exigindo que os gentios deveriam se abster de certas coisas que chocavam especialmente os judeus.
Foi decidido, primeiramente, que os gentios estavam isentos da Lei Mosaica. Em segundo lugar, que aqueles da Síria e Cilícia deviam se abster das coisas sacrificadas aos ídolos, do sangue, carnes sufocadas e da fornicação. Em terceiro lugar, que esta injunção foi imposta a eles, não em virtude da Lei Mosaica, mas em nome do Espírito Santo. Isto significa o completo triunfo das ideias de Paulo.
A restrição imposta aos gentios convertidos da Síria e Cilícia não preocupou suas Igrejas, e Tito, seu companheiro, não foi compelido a ser circuncidado, a despeito dos ruidosos protestos dos judaizantes (Gálatas 2:3-4). Aqui é para ser assumido que Gálatas 2 e Atos 15 relatam o mesmo fato, pois os atores são os mesmos, Paulo e Barnabé de um lado, Pedro e Tiago do outro; a discussão é a mesma, a questão da circuncisão dos gentios; os cenários são os mesmos, Antioquia e Jerusalém; a data é a mesma, por volta de 50 d.C.; e o resultado é o mesmo, a vitória de Paulo sobre os judaizantes.
Porém, a decisão de Jerusalém não afastou todas as dificuldades. A questão não dizia respeito apenas aos gentios, e enquanto os isentava da Lei Mosaica, não foi declarado que aquilo não seria contado como meritório e mais perfeito para eles de ser observado, como o decreto pareceu compará-los aos judeus prosélitos de segunda classe. Além disso os judeo-cristãos, não tendo sido incluídos no veredito, estavam ainda livres para considerar a si mesmos ligados à observância da lei. Esta foi a origem da disputa que pouco depois emergiu em Antioquia entre Pedro e Paulo. Este último ensinou abertamente que a lei fora abolida para os próprios judeus. Pedro não pensava o contrário, mas considerou sábio evitar ofender os judaizantes e evitar comer com os gentios que não observassem todas as prescrições da lei. Como ele assim influenciou moralmente os gentios a viver como os judeus viviam, Paulo demonstrou a ele que esta dissimulação ou oportunismo preparava o caminho para futuros desentendimentos e conflitos e mesmo então haviam consequências lamentáveis. Sua maneira de relatar este incidente não deixa espaço para a dúvida de que Pedro fora persuadido por seus argumentos (Gálatas 2:11-20).
Segunda missão (Atos 15:36-18:22)
O começo da segunda missão foi marcado por uma discussão muito forte a respeito de Marcos, a quem S. Paulo desta vez recusou a aceitar como companheiro de viagem. Consequentemente Barnabé parte com Marcos para Chipre e Paulo escolhe Silas ou Silvano, um cidadão romano como ele próprio, e um membro influente da Igreja de Jerusalém, e enviado por ela a Antioquia para entregar os decretos do concílio Apostólico. Os dois missionários primeiro foram de Antioquia para Tarso, parando no caminho para promulgar as decisões do Concílio de Jerusalém; então eles foram de Tarso para Derbe, através dos Portões Cilicianos, dos desfiladeiros de Tarso, e das planícies da Licaônia. A visitação das Igrejas fundadas durante sua primeira missão se deu sem incidentes notáveis exceto pela escolha de Timóteo, a quem o Apóstolo enquanto esteve em Listra persuadiu a acompanhá-lo, e a quem ele fez ser circuncidado em ordem a facilitar seu acesso aos judeus que eram numerosos naqueles lugares.
Foi provavelmente na Antioquia da Pisídia, embora os Atos não mencionem aquela cidade, que o itinerário da missão foi alterado pela intervenção do Espírito Santo. Paulo pensou em adentrar a Província da Ásia pelo vale de Meander que estava a apenas três dias de viagem, mas eles passaram através da Frígia e do país da Galácia, tendo sido proibidos pelo Espírito Santo de pregar a palavra de Deus na Ásia (Atos 16:6). Estas palavras (ten phrygian kai Galatiken choran) são interpretadas de maneiras variáveis, dependendo se as tomamos como significando os Gálatas do norte ou do sul (ver GÁLATAS). Qualquer que seja a hipótese, os missionários tinham que viajar rumo ao norte naquela porção da Galácia propriamente chamada da qual Pessinonte era a capital, e a única questão é quanto a se eles pregaram ou não lá. Eles não pretendiam, mas como é sabido a evangelização dos Gálatas deve-se a um acidente, a saber, a doença de Paulo (Gálatas 4:13); isto se encaixa muito bem para os Gálatas do norte. Em todo caso os missionários ao atingir a parte superior da Mísia (kata Mysian), tentaram entrar na rica Província da Bitínia, que estava diante deles, mas o Espírito Santo os impediu (Atos 16:7). Portanto, passando através da Mísia sem parar para pregar (parelthontes) eles alcançaram Alexandria de Troas, onde a vontade de Deus foi novamente tornada conhecida deles na visão de um macedônio que os chamou a ir visitar e ajudar seu país (Atos 16:9-10).
Paulo continuou a seguir em solo europeu o método de pregação que havia empregado desde o início. Até onde foi possível ele concentrou seus esforços em uma metrópole da qual a Fé se espalharia para cidades de segunda classe e para os distritos do país. Onde que que houvesse uma sinagoga ele primeiro se estabelecia ali e pregava para os judeus e prosélitos que consentiam em dar-lhe ouvidos. Quando a ruptura com os judeus ficava irreparável, o que sempre acontecia cedo ou tarde, ele fundava uma nova Igreja com seus neófitos como um núcleo. Ele permanecia na mesma cidade até que a perseguição, geralmente levantada pelas intrigas dos judeus, a forçava a se retirar. Havia, no entanto, variações deste plano. Em Filipo, onde não havia sinagoga, a primeira pregação teve lugar em um oratório descoberto chamado de proseuche, o qual os gentios tornaram razão para iniciar a perseguição. Paulo e Silas, acusados de perturbar a ordem pública, foram açoitados com varas, aprisionados e finalmente exilados. Mas em Tessalônica e Bereia, para onde eles sucessivamente se dirigiram após deixar Filipo, as coisas ocorreram quase como eles haviam planejado.
O apostolado de Atenas foi realmente excepcional. Lá não havia problema com judeus ou sinagoga, Paulo, contrário ao seu costume, estava sozinho (1 Tessalonicenses 3:1), e ele proferiu diante do aerópago um discurso especialmente apropriado, uma sinopse do qual ficou preservada em Atos 17:23-31 como um exemplar de seu tipo. Ele parece ter deixado a cidade por conta própria, se ser forçado a fazê-lo por motivo de perseguição. A missão para Corinto por outro lado pode ser considerada típica. Paulo pregou na sinagoga a cada dia de sábado, e quando a violenta oposição dos judeus negou a sua entrada lá ele se retirou para uma casa adjacente que era propriedade de um prosélito chamado Titus Justus. Ele continuou seu apostolado desta maneira por dezoito meses, enquanto os judeus investiam contra ele em vão; ele foi capaz de suportá-los devido à imparcial, senão favorável de fato, atitude do próconsul, Galião. Finalmente ele decidiu ir para Jerusalém em cumprimento de um voto feito talvez em um momento de perigo. De Jerusalém, segundo o seu costume, ele retornou a Antioquia. As duas Epístolas aos Tessalonicenses foram escritas durante os primeiros meses de sua breve estadia em Corinto. Para ocasião, circunstâncias e análise destas cartas veja TESSALONICENSES.
Terceira missão (Atos 18:23-21:26)
O destino de Paulo em sua terceira viagem era obviamente Éfeso. Lá Áquila e Priscila estavam esperando por ele, ele havia prometido aos efésios retornar e evangelizá-los se fosse da vontade de Deus (Atos 18:19-21) e o Espírito Santo não mais fizesse oposição à sua entrada na Ásia. Portanto, após um breve descanso em Antioquia ele atravessou os países da Galácia e da Frígia (Atos 18:23) e passando através das “regiões superiores” da Ásia Central ele alcançou Éfeso (19:1). Seu método permanecia o mesmo. De modo a ganhar a vida e não ser um peso aos fiéis ele trabalhava pesado todos os dias por várias horas fabricando tendas, mas isto não o impedia de pregar o Evangelho. Como de costume ele começava com a sinagoga onde ele conseguiu permanecer por três meses. Ao final deste tempo ele ensinava a cada dia em uma sala de aula colocada à sua disposição por um certo Tirano “da quinta hora até a décima” (de onze da manhã até às quatro da tarde), de acordo com a interessante adição ao “Codex Bezae” (Atos 19:9). Isto durou dois anos, de maneira que todos os habitantes da Ásia, judeus e gregos, ouviram a palavra do Senhor (Atos 19:20).
Naturalmente havia provações para enfrentar e obstáculos para superar. Alguns destes obstáculos advinham da inveja dos judeus, que em vão se esforçavam para imitar os exorcismos de Paulo, outros da superstição dos pagãos, que era especialmente abundante em Éfeso. Tão eficazmente ele triunfou sobre isso, porém, que livros de superstição foram queimados no valor de 50.000 peças de prata (cada peça valendo cerca de um dia de salário). Desta vez a perseguição foi devida aos gentios e inspirada por um motivo de interesse próprio. Devido ao progresso do cristianismo ter arruinado a venda de pequenos fac-símiles do templo de Diana e estatuetas da deusa, que peregrinos devotos tinham o costume de vender, um certo Demétrio, na chefia da guilda dos ourives, agitou o povo contra Paulo. A cena que se sucedeu no teatro está descrita por S. Lucas com vivacidade e páthos memoráveis (Atos 19:23-40). O Apóstolo teve que se render à tormenta. Após uma estada de dois anos e meio em Éfeso, talvez mais (Atos 20:31: trietian), ele partiu para Macedônia e de lá para Corinto, onde passou o inverno. Era sua intenção navegar na primavera seguinte a Jerusalém, sem dúvida para a Páscoa; mas tendo sabido que os judeus planejavam a sua destruição, ele não quis, indo pelo mar, conceder-lhes uma oportunidade de atentar contra a sua vida. Portanto ele retornou pelo caminho Macedônia. Numerosos discípulos se dividiram em dois grupos, acompanhando-o ou esperando-o em Trôade. Estes eram Sópatro de Bereia, Aristarco e Segundo de Tessalônica, Gaio de Derbe, Timóteo, Tíquico e Trófimo da Ásia, e finalmente Lucas, o historiador dos Atos, que nos deu minuciosamente todos os estágios da viagem: Filipo, Trôade, Assos, Mitilene, Quios, Samos, Mileto, Cós, Rodes, Pátara, Tiro, Ptolemaida, Cesareia, Jerusalém.
Mais outros três fatos marcantes devem ser notados de passagem. Em Trôade Paulo ressuscitou o jovem Êutico, que caiu da janela do terceiro andar enquanto Paulo estava pregando tarde da noite. Em Mileto ele proferiu perante os anciãos de Éfeso o tocante discurso de despedida que derramou muitas lágrimas (Atos 20:18-38). Em Cesareia o Espírito Santo pela boca de Ágabo, predisse a sua prisão vindoura, mas não o dissuadiu de ir para Jerusalém.
As quatro grandes epístolas de São Paulo foram escritas durante esta terceira missão: a primeira aos Coríntios de Éfeso, por volta do tempo da Páscoa antes da sua partida daquela cidade; a segunda aos Coríntios da Macedônia, durante o verão ou outono do mesmo ano; aquela aos Romanos de Corinto, na primavera seguinte; a data da Epístola aos Gálatas é debatida. Nas muitas questões ocasionadas pela expedição e a linguagem destas cartas, ou a situação assumida seja do lado do Apóstolo ou de seus correspondentes, ver EPÍSTOLAS AOS CORÍNTIOS; EPÍSTOLA AOS GÁLATAS; EPÍSTOLA AOS ROMANOS.
Cativeiro (Atos 21:27-28:31)
Falsamente acusado pelos judeus de ter levado gentios para dentro do Templo, Paulo foi maltratado pela população e acorrentado na fortaleza Antônia pelo tribuno Lisias. Este último tendo sabido que os judeus tinham conspirado traiçoeiramente para assassinar o prisioneiro o enviou com uma forte escolta para Cesareia, que era a residência do procurador Félix. Paulo teve pouca dificuldade em confundir seus acusadores, mas como ele se recusava a comprar sua liberdade, Félix o manteve acorrentado por dois anos e mesmo o deixou na prisão para agradar os judeus, até a chegada de seu sucessor, Festo. O novo governador quis enviar o prisioneiro para Jerusalém para ser julgado na presença de seus acusadores; mas Paulo, que estava ciente das ciladas de sus inimigos, apelou para César. Desta forma as causa só poderia ser jugada em Roma. Este primeiro período de cativeiro é caracterizado por cinco discursos do Apóstolo: o primeiro foi proferido em hebraico nos degraus de Antônia perante a multidão ameaçadora; nele Paulo relata sua conversão e vocação para o apostolado, mas ele foi interrompido por gritos hostis da multidão (Atos 22:1-22). No segundo, proferido no dia seguinte, perante o Sinédrio reunido ao comando de Lisias, o Apóstolo habilmente enredou os fariseus com os saduceus e nenhuma acusação pôde ser apresentada. No terceiro, Paulo, respondendo seu acusador Tertulo na presença do governador Félix, fez saber os fatos que haviam sido distorcidos e prova sua inocência (Atos 24:10-21). O quarto discurso é meramente um resumo explicativo da Fé Cristã proferido perante Félix e sua esposa Drusila (Atos 24:24-25). O quinto, pronunciado perante o governador Festo, o Rei Agripa e sua esposa Berenice, novamente relata a história da conversão de Paulo, e é deixado inacabado devido às interrupções sarcásticas do governador e à atitude envergonhada do rei (Atos 26).
A viagem do cativo Paulo da Cesareia até Roma é descrita por S. Lucas com uma exatidão e vivacidade de cores que não deixam nada a desejar. Para comentários ver Smith, “Viagem e Naufrágio de São Paulo” (1866); Ramsay, “S. Paulo o Viajante e Cidadão Romano” (Londres, 1908). O centurião Júlio embarcou Paulo e seus colegas prisioneiros em um navio mercante a bordo do qual Lucas e Aristarco foram capazes de tomar passagem. Como a estação estava adiantada a viagem foi vagarosa e difícil. Eles contornaram a costa da Síria, Cilícia e Panfília. Em Mira na Lícia os prisioneiros foram transferidos para um navio alexandrino que seguia para a Itália, mas com os ventos persistentemente contrários eles alcançaram com muita dificuldade um lugar em Creta chamado Bons Portos e Paulo aconselhou que eles deviam passar o inverno ali, mas seu conselho não foi seguido e a embarcação dirigida por uma tempestade ficou à deriva por quatorze dias inteiros, tendo finalmente se destroçado na costa de Malta. Os três meses durante os quais a navegação era considerada mais perigosa foram gastos ali, mas com os primeiros dias da primavera a viagem foi retomada com a maior pressa possível. Paulo deve ter chegado a Roma em algum momento durante março. “Paul permaneceu por dois anos inteiros no aposento alugado . . . Pregava o reino de Deus e ensinava as coisas a respeito do Senhor Jesus Cristo, com toda a liberdade e sem proibição” (Atos 28:30-31). Com estas palavras os Aots dos Apóstolos são concluídos.
Não há dúvida de que o julgamento de Paulo terminou em uma sentença de absolvição, pois
- o relatório do governador Festo foi certamente favorável bem como o do centurião.
- Os judeus parecem ter abandonado suas acusações visto que seus correligionários em Roma não foram informados delas (Atos 28:21).
- O curso dos procedimentos levou Paulo a esperar por uma libertação, da qual ele às vezes fala como de uma certeza (Filipenses 1:25; 2:24; Filêmon 22).
- Os pastorais, se eles são autênticos, assumem um período de atividade por Paulo subsequente ao seu cativeiro. A mesma conclusão é extraída da hipótese de que eles não sejam autênticos, pois todos concordam que o autor estava bastante familiarizado com a vida do Apóstolo. É quase unânime a opinião de que as assim chamadas Epístolas do cativeiro foram enviadas a partir de Roma. Alguns autores tentaram provar que S. Paulo as escreveu durante sua detenção em Cesareia, mas encontraram poucos que concordassem com eles. As epístolas aos Colossenses, aos Efésios e Filêmon foram despachadas juntas e pelo mesmo mensageiro, Tíquico. É uma questão controvertida se a Epístola aos Filipenses foi anterior ou subsequente a estas e a questão ainda não foi respondida por argumentos decisivos (ver EPÍSTOLA AOS FILIPENSES; EPÍSTOLA AOS EFÉSIOS; EPÍSTOLA AOS COLOSSENSES; EPÍSTOLA A FILÊMON).
Últimos anos
Este período está envolto em profunda obscuridade pois, ausente no relato dos Atos, nós não temos nenhum guia salvo um geralmente incerta tradição e as breves referências às epístolas pastorais. Paulo havia muito expressava o desejo de ir para a Espanha (Romanos 15:24, 28) e não há evidência de que ele tenha sido levado a mudar seu plano. Quando próximo do final do seu cativeiro ele anuncia sua chegada a Filêmon (22) e aos Filipenses (2:23-24), ele não parece considerar esta visita como imediata já qe ele prometeu aos Filipenses enviá-los um mensageiro logo que ele soubesse do resultado de seu julgamento; ele portanto planeja outra viagem antes de seu retorno ao oriente. Finalmente, sem mencionar o testemunho posterior de S. Cirilo de Jerusalém, S. Epifânio, S. Jerônimo, S. Crisóstomo e Teodoreto, do texto bem conhecido de S. Clemente de Rome, do testemunho do “Cânon Muratoriano” e do “Acta Pauli” que fazem provável a viagem de Paulo à Espanha. Em todo caso ele pode não ter se demorado lá, pois tinha pressa de revisitar suas Igrejas no Oriente. Ele pode ter retornado da Espanha através do sul da Gália se estivesse por lá, como alguns Padres pensaram, e não para a Galácia, para onde Crescente fora enviado mais tarde (2 Timóteo 4:10). Podemos prontamente acreditar que ele após cumprir a promessa feita a seu amigo Filêmon e que nesta ocasião ele visitou as igrejas do vale da Lícia, Laodiceia, Colossas e Hierápolis.
O itinerário agora passa a ser muito incerto, mas os fatos que se seguem parecem indicados pelas Pastorais: Paulo permaneceu em Creta exatamente por tempo o suficiente para fundar lá novas igrejas, o cuidado e organização das quais ele confiou a seu companheiro Tito (Tito 1:5). Ele então foi para Éfeso, e pediu a Timóteo, que já estava lá, para permanecer até seu retorno enquanto ele procedia para a Macedônia (1 Timóteo 1:3). Nesta ocasião ele pagou a sua visita prometida aos Filipenses (Filipenses 2:24), e naturalmente também viu os Tessalonicenses. A carta a Tito e a Primeira Epístola a Timóteo devem datar deste período; elas parecem ter sido escritas por volta da mesma época e pouco depois de partir de Éfeso. A questão é se elas foram enviadas da Macedônia ou, o que parece mais provável, de Corinto. O Apóstolo instrui Tito a se unir a ele em Nicópolis de Epiro onde ele pretendia passar o inverno (Tito 3:12). Na primavera seguinte ele deve ter prosseguido com seu plano de retornar à Ásia (1 Timóteo 3:14-15). Aqui ocorre o obscuro episódio de sua prisão, que provavelmente teve lugar em Trôade; isto explicaria ele ter deixado com Carpo uma capa e livros dos quais ele precisava (2 Timóteo 4:13). Ele foi levado de lá para Éfeso, capital da Província da Ásia, onde ele foi desertado por todos aqueles com quem ele pensou que podia contar (2 Timóteo 1:15). Sendo enviado a Roma para julgamento ele deixou Trófimo doente em Mileto e Erasto, outro de seus companheiros, permaneceu em Corinto, por qual razão não está claro (2 Timóteo 4:20). Quando Paulo escreveu sua Segunda Epístola a Timóteo de Roma ele sentiu que toda a esperança humana estava perdida (4:6); ele suplica a seu discípulo que se junte a ele o mais rápido possível, pois ele está sozinho com Lucas. Nós não sabemos se Timóteo foi capaz de chegar a Roma antes da morte do Apóstolo.
A antiga tradição torna possível estabelecer os seguintes pontos:
- Paulo sofreu o martírio próximo a Roma em um lugar chamado Aquae Salviae (agora Tre Fontane), algo a leste do Caminho de Óstia, a cerca de duas milhas da esplêndida Basílica de San Paolo fuori le mura que marca o local de sua sepultura.
- O martírio teve lugar no final do reinado de Nero, no décimo segundo ano (S. Epifânio), no décimo terceiro (Eutálio), ou no décimo quarto (S. Jerônimo).
- De acordo com a opinião mais comum, Paulo pereceu no mesmo ano e no mesmo que Pedro; vários Padres Latinos argumentam que tenha sido no mesmo dia mas não no mesmo ano; a testemunha mais velha, S. Dionísio, o Coríntio, diz apenas kata ton auton kairon, que pode ser traduzido por “ao mesmo tempo” ou “por volta do mesmo tempo”.
- Desde tempos imemoriais a solenidade dos Apóstoles Pedro e Paulo tem sido celebrada em 29 de junho, que é o aniversário ou da sua morte ou da transladação de suas relíquias.
Formalmente o papa, após ter pontificado na Basílica de S. Pedro, foi com seus subordinados àquela de S. Paulo porém a distância entre as duas basílicas (cerca de cinco milhas) deixou a dupla cerimônia muito exaustiva, especialmente àquela estação do ano. Assim surgiu o costume prevalecente de transferir para o dia seguinte (30 de junho) a Comemoração de S. Paulo. A festa da Conversão de S. Paulo (25 de Janeiro) é de uma origem comparativamente recente. Há razões para acreditar que a data foi primeiro observada para marcar a transladação das relíquias de S. Paulo em Roma, pois assim aparece no Martirológio Jeronimiano. É desconhecido da Igreja Grega (Dowden, “The Church Year and Kalendar”, Cambridge, 1910, 69; cf. Duchesne, “Origines du culte chrétien”, Paris, 1898, 265-72; McClure, “Christian Worship”, Londres, 1903, 277-81).
Retrato físico e moral de S. Paulo
Nós aprendemos de Eusébio (História Eclesiástica VII.18) que já em sua época existiam pinturas representando Cristo e os Apóstolos Pedro e Paulo. As características de Paulo foram preservadas em três monumentos antigos:
- Um díptico que data de pouco depois do século IV (Lewin, “A Vida e Epístolas de São Paulo”, 1874, frontispício do Vol. I e Vol. II, 210).
- Uma grande medalha encontrada no cemitério de Domitila, representando os Apóstolos Pedro e Paulo (Op. cit., II, 411).
- Um prato de vidro no British Museum, retratando os mesmos Apóstolos (Farrara, “Vida e Obra de S. Paulo”, 1891, 896).
Temos também as descrições concordantes dos “Acta Pauli et Theclae”, de Pseudo-Luciano em Filopatris, de Malalas (Chronogr., x), e de Nicéforo (Hist. eccl., III, 37).
Paulo era de estatura baixa; Pseudo-Crisóstomo chama-o de “o homem de três cúbitos” (anthropos tripechys); ele tinha ombros largos, era um pouco calvo, com um nariz ligeiramente aquilino, sobrancelhas bem juntas, uma barba grisalha espessa, tez clara, e modos agradáveis e afáveis. Ele foi afligido com uma doença que é difícil diagnosticar (cf. Menzies, “A Enfermidade de S. Paulo” no “Expository Times”, julho e set., 1904), mas a despeito desta dolorosa e humilhante enfermidade (2 Coríntios 12:7-9; Gálatas 4:13-14) e embora a sua postura não fosse impressionante (2 Coríntios 10:10), Paulo deve ter indubitavelmente possuído uma grande força física para se manter por tanto tempo em tais trabalhos sobrehumanos (2 Coríntios 11:23-29). Pseudo-Crisóstomo, “In princip. apostol. Petrum et Paulum” (in P.G., LIX, 494-95), considera que ele morreu com a idade de sessenta e oito após ter servido ao Senhor por trinta e cinco anos.
O retrato moral é mais difícil de desenhar porque é cheio de contrastes. Seus elementos serão encontrados: em Lewin, op. cit., II, xi, 410-35 (Personalidade e Caráter de Paulo); em Farrar, op. cit., Appendix, Excursus I; e especialmente em Newman, “Sermões pregados em Várias Ocasiões”, vii, viii.
Teologia de S. Paulo
Paulo e Cristo
Esta questão passou por duas fases distintas. De acordo com os principais seguidores da Escola de Tübingen, o Apóstolo tinha não mais que um vago conhecimento da vida e dos ensinamentos do Cristo histórico e até mesmo desdenhava de tal conhecimento como inferior e inútil. O seu (desta teoria) único suporte é este texto mal interpretado: “Et si cognovimus secundum carnem Christum, sed nunc jam novimus” (2 Coríntios 5:16). A oposição notada neste texto não está entre o Cristo histórico e o glorificado, mas entre o Messias tal como os judeus descrentes O representavam, tal como talvez Ele tenha sido pregado por certos judaizantes, e o Messias como Ele próprio Se manifestou em Sua morte e ressureição, como Ele foi confessado pelo Paulo convertido. Não é nem admissível tampouco provável que Paulo seria desinteressado na vida e pregação Dele, Aquele a quem ele amava apaixonadamente, a Quem ele constantemente apontava para a imitação de seus neófitos, e Cujo espírito ele jactava-se de possuir. É incrível que ele não questionaria sobre esse assunto testemunhas, como Barnabé, Silas, ou os futuros historiadores do Cristo, os sts. Marcos e Lucas, com quem ele ficou por tanto tempo associado. Um exame cuidadoso deste assunto chegou a às três seguintes conclusões a respeito das quais há agora uma concordância geral:
- Há em S. paulo mais alusões à vida e ensinamentos de Cristo que se poderia suspeitar à primeira vista, e o jeito casual com o qual elas são feitas demonstra que o Apóstolo conhecia mais sobre o assunto do que teve ocasião, ou desejo, de contar.
- Estas alusões são mais frequentes em S. Paulo que nos Evangelhos.
- Dos tempos apostólicos existiu uma catequese, tratando entre outras coisas da vida e ensinamentos de Cristo, e como supõe-se que todos os neófitos possuíam uma cópia não era necessário se referir a ela a não ser ocasionalmente e de passagem.
A segunda fase da questão está intimamente conectada com a primeira. Os mesmos teólogos, que sustentam que Paulo era indiferente à vida terrena e aos ensinamentos de Cristo, deliberadamente exageram sua originalidade e influência. De acordo com eles Paulo foi o criador da teologia, o fundador da Igreja, o pregador do asceticismo, o defensor dos sacramentos e do sistema eclesiástico, o oponente da religião do amor e da liberdade que Cristo veio anunciar ao mundo. Se, para honrá-lo, ele é chamado de segundo fundador do cristianismo, este deve ser um cristianismo degenerado e alterado já que foi pelo menos parcialmente oposto ao cristianismo primitivo. Paulo é assim tornado responsável por cada antipatia ao pensamento moderno sobre o cristianismo tradicional.
Isto é em grande parte a origem do movimento “De volta para Cristo”, os estranhos devaneios que agora nós testemunhamos. A razão principal para retornar ao Cristo é escamar de Paulo, o originador do dogma, o teólogo da fé. O grito “Zuruck zu Jesu” que ressoou na Alemanha por trinta anos, é inspirado pelo motivo ulterior, “Los von Paulus”. O problema é: Era a relação de Paulo com o Cristo aquela de um discípulo com seu mestre? Ou ele era absolutamente autodidata, independente tanto do Evangelho de Cristo e da pregação dos Doze? Deve ser admitido que a maioria dos ensaios lança poucas luzes sobre o assunto. Contudo, a discussão não tem sido inútil, pois eles mostram que a maioria das características da doutrina Paulina, como a justificação pela fé, a morte redentora de Cristo, a universalidade da salvação, estão de acordo com os escritos dos primeiros Apóstolos, dos quais elas são derivadas. Julicher em particular apontou que a cristologia de Paulo, que é mais exaltada que aquela de seus companheiros no apostolado, nunca foi objeto de controvérsia, e que Paulo não tinha consciência de ser singular a esse respeito dos outros arautos do Evangelho. Cf. Morgan, “De volta para Cristo” em “Dic. de Cristo e dos Evangelhos”, I, 61-67; Sanday, “Paul”, loc. cit., II, 886-92; Feine, “Jesus Christus und Paulus” (1902); Goguel, “L’apôtre Paul et Jésus-Christ” (Paris, 1904); Julicher, “Paulus und Jesus” (1907).
A ideia base da teologia de S. Paulo
Vários autores modernos consideram que a teodiceia está na base, centro e topo da teologia Paulina. “A doutrina do apóstolo é teocêntrica, não antropocêntrica na realidade. O que é denominado a sua ‘metafísica’ contém para Paulo o fato imediato e soberano do universo; Deus, como ele O concebe, é tudo em todos para sua razão e coração igualmente” (Findlay em Hastings, “Dic. da Bíblia”, III, 718). Stevens inicia a exposição de sua “Teologia Paulina” com um capítulo intitulado “A doutrina de Deus“. Sabatier (L’apotre Paul, 1896, 297) também considera que “a última palavra da teologia Paulina é: “Deus é tudo em todos”, e ele faz a ideia de Deus a coroa do edifício teológico de Paulo. Mas estes autores não refletiram que apesar de a ideia de Deus ocupar um lugar tão grande nos ensinamentos do Apóstolo, aquele pensamento é profundamente religioso como aquele de todos os seus compatriotas, não é característico dele, nem o distingue de seus companheiros no apostolado nem mesmo dos judeus contemporâneos.
Muitos teólogos protestantes modernos, espcialmente entre os mais ou menos fiéis seguidores da Escola de Tübingen, sustentam que a doutrina de Paulo é “antropocêntrica”, de que ela parte da concepção da inabilidade do homem de cumprir a lei de Deus sem a ajuda da graça a tal ponto que é um escravo do pecado e deve empreender uma guerra contra a carne. Mas se esta for a gênese da ideia de Paulo é surpreendendo que ele a enuncie apenas em um capítulo (Romanos 7), cujo sentido é controverso, de modo que se este capítulo não tivesse sido escrito, ou tivesse sido perdido, nós não teríamos meios de recuperar a chave para os seus ensinamentos. Entretanto, a maioria dos teólogos modernos hoje concorda que a doutrina de S. Paulo seja cristocêntrica, que é em sua base uma soteriologia, não de um ponto de vista subjetivo,de acordo com o preconceito antigo dos fundadores do protestantismo que fizeram da justificação pela fé a quintessência do Paulinismo, mas de um ponto de vista objetivo, abraçando em uma ampla síntese a pessoa e a obra do Redentor. Isto pode ser provado empiricamente pela afirmação de que tudo em S. Paulo converge em direção a Jesus Cristo, tanto que, abstraída de Jesus Cristo ela se torna, seja tomada coletivamente ou em detalhes, absolutamente incompreensível. Isto é provado também pela demonstração de que o que Paulo chama seu Evangelho é a salvação de todos os homens através de Cristo e em Cristo. Este é o ponto de vista das seguintes breves análises:
A humanidade sem o Cristo
Os três primeiros capítulos da Epístola aos Romanos nos mostram a natureza humana completamente sob o domínio do pecado. Nem os gentios nem os judeus tinham resistido à torrente do mal. A Lei Mosaica fora uma barreira fútil porque prescrevia o bem sem importar a força para fazê-lo. O Apóstolo chega a esta funesta conclusão: “Pois não há distinção [entre judeus e gentios]; com efeito todos pecaram e todos estão necessitados da glória de Deus” (Romanos 3:22-23). Ele subsequentemente nos leva de volta à causa histórica desta desordem: “Por isso, como por um só homem entrou o pecado neste mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram” (Romanos 5:12). Este homem é obviamente Adão, o pecado que ele trouxe para o mundo não é apenas seu pecado pessoal, mas um pecado predominante que entrou em todos os homens e deixou neles a semente da morte: “Todos pecaram quando Adão pecou; todos pecaram e com o seu pecado” (Stevens, “Teologia Paulina”, 129).
Resta ver como o pecado original, que é nossa herança pela geração natural, se manifesta externamente e se torna fonte dos nossos próprios pecados. Isto Paulo nos ensina no capítulo 7, onde descrevendo o contexto entre a Lei assistida pela razão e pela natureza humana enfraquecida pela carne e a tendência ao mal, ele representa a natureza como inevitavelmente subjugada: “Deleito-me na lei de Deus, no íntimo do meu ser. Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado” (Romanos 7:22-23). Isto não significa que o nosso organismo, o substrato material, seja mau em si, como alguns teólogos da Escola de Tübingen alegaram, pois a carne de Cristo, que era conforme a nossa, estava isenta do pecado, e o Apóstolo deseja que nossos corpos, que estão destinados a ressuscitar, sejam conservados livres de manchas. A relação entre o pecado e a carne não é inerente nem necessária; é acidental, determinada por um fato histórico, e capaz de desaparecer através da intervenção do Espírito Santo, porém não é menos verdade que não está em nosso poder superá-lo sem assistência e que a humanidade decaída precisou de um Salvador.
Contudo Deus não abandonou o homem pecador. Ele continuou a Se manifestar através de sua Palavra visível (Romanos 1:19-20), através da luz de uma consciência (Romanos 2:14-15), e finalmente através de sua sempre paternalmente benevolente Providência (Atos 14:16; 17:26). Além disso, em sua incansável misericórdia, Ele “deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2:4). Este desejo é necessariamente subsequente ao pecado original já que ele se refere ao homem como ele está no presente. De acordo com Seus desígnios misericordiosos Deus guia o homem passo a passo para a salvação. Para os Patriarcas e especialmente para Abraão, Ele deu Sua gratuita e generosa promessa, confirmada por juramento (Romanos 4:13-20; Gálatas 3:15-18), que antecipava o Evangelho. Para Moisés Ele deu a Sua Lei, cuja observação deveria ser um meio de salvação (Romanos 7:10; 10:5), e a qual, mesmo quando violada, como foi na realidade, não era menos um guia conduzindo ao Cristo (Gálatas 3:24) e um instrumento da misericórdia nas mãos de Deus. A Lei foi um mero interlúdio até aquele tempo em que a humanidade deveria estar madura para uma completa revelação (Gálatas 3:19; Romanos 5:20), e logo produzia a ira divina (Romanos 4:15). Mas o bem surgirá do excesso de mal e “a Escritura encerrou tudo sob o império do pecado, para que a promessa mediante a fé em Jesus Cristo fosse dada aos que crêem” (Gálatas 3:22). Isto seria cumprido na “plenitude dos tempos” (Gálatas 4:4; Efésios 1:10), isto é, no tempo determinado por Deus para a execução de Seus desígnios misericordiosos, quando o desamparo do homem estivesse bem manifestada. Então “Deus enviou seu Filho, que nasceu de uma mulher, e nasceu submetido a uma lei, a fim de remir os que estavam sob a lei, para que recebêssemos a sua adoção” (Gálatas 4:4).
A pessoa do Redentor
Praticamente todas as afirmações relacionadas à pessoa de Jesus Cristo carregam seja direta ou indiretamente a indicação do Seu papel como um Salvador. Com S. Paulo a cristologia é uma função da soteriologia. Por mais amplos que estes esboços sejam, eles nos mostram a imagem fiel de Cristo em Sua pré-existência, em Sua existência histórica e em Sua vida glorificada (ver F. Prat, “Théologie de Saint Paul”).
(1) Cristo em Sua pré-existência
(a) Cristo é de uma ordem superior a todos os seres criados (Efésios 1:21); Ele é o Criador e Sustentador do Mundo (Colossenses 1:16-17); tudo foi criado por Ele, Nele e para Ele (Colossenses 1:16).
(b) Cristo é a imagem do Pai invisível (2 Coríntios 4:4; Colossenses 1:15); Ele é o Filho de Deus, mas diferente de outros filhos é tal de um jeito incomunicável; Ele é o Filho, o próprio Filho, o bem-amado, e isto Ele sempre foi (2 Coríntios 1:19; Romanos 8:3, 8:32; Colossenses 1:13; Efésios 1:6; etc.).
(c) Cristo é o objeto das doxologias reservadas a Deus (2 Timóteo 4:18; Romanos 16:27); Ele é invocado como equivalente ao Pai (2 Coríntios 12:8-9; Romanos 10:12; 1 Coríntios 1:2); dons são pedidos a Ele que estão em poder de Deus apenas conceder, a saber, a graça, a misericórdia, a salvação (Romanos 1:7; 16:20; 1 Coríntios 1:3; 16:23; etc. diante Dele todo joelho se dobra nos céus, na terra e sob a terra (Filipenses 2:10), bem como toda cabeça se inclina em adoração da majestade do Altíssimo.
(d) Cristo possui todos os atributos divinos; Ele é eterno, já que Ele é o “primogênito de toda a criação” e existe antes de todos os séculos (Colossenses 1:15-17); Ele é imutável, visto que Ele existe “na condição Divina” (Filipenses 2:6); Ele é onipotente, posto que Ele tem o poder de trazer à existência o ser a partir do nada (Colossenses 1:16); Ele é imenso, pois Ele preenche todas as coisas com a Sua plenitude (Efésios 4:10; Colossenses 2:10); Ele é infinito já que “a plenitude da divindade habita corporalmente Nele” (Colossenses 2:9). Tudo aquilo que é propriedade especial de Deus pertence a Ele por direito; o tribunal de Deus é o tribunal de Cristo (Romanos 14:10; 2 Coríntios 5:10); o Evangelho de Deus é o Evangelho de Cristo (Romanos 1:1, 1:9, 15:16, 15:19, etc.); a Igreja de Deus é a Igreja de Cristo (1 Coríntios 1:2 e Romanos 16:16 sqq.); o Reino de Deus é o Reino de Cristo (Efésios 5:5), o Espírito de Deus é o Espírito de Cristo (Romanos 8:9 sqq.).
(e) Cristo é o único Senhor (1 Coríntios 8:6); Ele é identificado com o Jeová da Antiga Aliança (1 Coríntios 10:4, 10:9; Romanos 10:13; cf. 1 Coríntios 2:16; 9:21); Ele é o Deus que adquiriu a Igreja com o seu próprio sangue” (Atos 20:28); Ele é nosso “grande Deus e Salvador Jesus Cristo” (Tito 2:13); Ele é o “Deus sobre todas as coisas” (Romanos 9:5), eclipsando por Sua infinita transcendência a soma e a substância de todas as coisas criadas.
(2) Jesus Cristo como Homem
O outro aspecto da figura de Cristo é desenhado com uma mão não menos firme. Jesus Cristo pe o segundo Adão (Romanos 5:14; 1 Coríntios 15:45-49); “o mediador entre Deus e os homens” (1 Timóteo 2:5), e com tal Ele deve necessariamente ser homem (anthropos Christos Iesous). Logo Ele é um descendente dos Patriarcas (Romanos 9:5; Gálatas 3:16), Ele é “da semente de Davi, segundo a carne)” (Romanos 1:3), “nascido de uma mulher” (Gálatas 4:4), como todos os homens; finalmente, Ele é conhecido como um homem por Sua aparência, que é exatamente similar àquela dos homens (Filipenses 2:7), livre do pecado, que Ele não conheceu e nem poderia conhecer (2 Coríntios 5:21). Quando S. Paulo diz que “Deus enviou Seu Filho numa carne semelhante à do pecado” (Romanos 8:3), ele não pretendia negar a realidade da carne de Cristo, mas excluir apenas a carne pecadora.
Em lugar algum o Apóstolo explica como a união das naturezas humana e divina é realizada em Cristo, se contentando em afirmar que Ele “sendo de condição Divina” assumiu “a condição de escravo” (Filipenses 2:6-7), ou afirmando a Encarnação nesta fórmula lacônica: “Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade” (Colossenses 2:9). O que vemos claramente é que há em Cristo uma única Pessoa a quem são atribuídas, geralmente na mesma sentença, qualidades próprias das naturezas divina e humana, da pré-existência, da existência histórica, e da vida glorificada (Colossenses 1:15-19; Filipenses 2:5-11; etc.). A explicação teológica do mistério deu origem a numerosos erros. Foi negada uma das naturezas, tanto a humana (Docetismo), como a divina (Arianismo), ou as duas naturezas foram consideradas como sendo unidas de uma maneira puramente acidental de forma a produzir duas pessoas (Nestorianismo), ou as duas naturezas foram reunidas em uma (Monofisicismo), ou com o pretexto de uní-las em uma pessoa os hereges mutilaram tanto a natureza humana (Apolinarianismo), ou a divina, de acordo com a estranha heresia moderna conhecida como Kenosis.
Esta última mencionada requer um breve tratamento, visto que é baseada em uma fala de S. Paulo “Sendo Ele de condição divina . . . aniquilou-se a si mesmo (ekenosen eauton, daí kenosis), assumindo a condição de escravo” (Filipenses 2:6-7). Contrário ao senso comum, Lutero aplicou estas palavras não ao Verbo, mas a Cristo, o Verbo Encarnado. Mais ainda ele compreendeu a communicatio idiomatus como uma posse real por cada uma das duas naturezas dos atributos da outra. De acordo com isto a natureza humana de Cristo possuiria os atributos divinos da ubiquidade (onipresença), onisciência e onipotência. Há dois sistemas entre os teólogos luteranos, um afirmando que a natureza humana de Cristo fora voluntariamente despojada destes atributos (kenosis), o outro que eles ficaram ocultos durante Sua existência mortal (krypsis).
Nos tempos modernos a doutrina da Kenosis, ainda que restrita à teologia Luterana, mudou completamente suas opiniões. Começando pela ideia filosófica de que a “personalidade” é identificada com a “consciência”, é sustentado que onde há uma só pessoa pode haver apenas uma consciência; mas como a consciência de Cristo era verdadeiramente uma consciência humana, a consciência divina deve necessariamente ter cessado de existir ou agir Nele. De acordo com Tomásio, o teórico do sistema, o Filho de Deus fora despojado, não depois da Encarnação, como Lutero afirmava, mas pelo próprio fato da Encarnação, e o que tornou possível a união do Logos com a humanidade foi a faculdade possuída pela divindade de limitar-se a si mesma tanto em ser e como em atividade. Os outros partidários do sistema se expressam de uma maneira similar. Gess, por exemplo, diz que em Jesus Cristo o ego divino é modificado em um ego humano. Quando objetado que Deus é imutável, que Ele não pode nem deixar de ser nem limitar-se a Si mesmo, nem transformar-se a Si mesmo, eles respondem que este raciocínio está em uma hipótese metafísica e conceitos sem realidade. (Para as várias formas de Kenosis ver Bruce, “A Humilhação de Cristo”, p. 136.)
Todos estes sistemas são meras variações do Monofisicismo. Inconscientemente eles assumem que há em Cristo apenas uma única natureza como há apenas uma única pessoa. De acordo com a doutrina católica, ao contrário, a união das duas naturezas em uma única pessoa não envolve mudança alguma na natureza divina e não precisa envolver qualquer mudança física na natureza humana de Cristo. Sem dúvida Cristo é o Filho e é moralmente destinado mesmo como homem aos bens de Seu Pai, a saber, a imediata visão de Deus, a beatitude eterna, o estado de glória. Ele foi temporariamente privado de uma porção destes bens de modo que pudesse cumprir com Sua missão como Redentor. Esta é a humilhação, a aniquilação, da qual São Paulo fala, mas é uma coisa totalmente diferente da Kenosis como descrita acima.
O objetivo redentor como a obra de Cristo
Nós vimos que tendo o homem decaído, sendo incapaz de se reerguer novamente sem ajuda, Deus em Sua misericórdia enviou o Seu Filho para o salvar. Esta é uma doutrina elementar e frequentemente repetida de S. Paulo que Jesus Cristo nos salva através da Cruz, que nó fomos “justificados por Seu sangue”, que “fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho” (Romanos 5:9-10). O que dotou o sangue de Cristo, Sua morte, Sua Cruz, com esta virtude redentora? Paulo nunca respondeu a esta questão diretamente, mas ele nos mostra o drama do Calvário sob três aspectos, que são perigosos de se separar e que são melhor compreendidos quando comparados:
(a) de uma vez a morte de Cristo é um sacrifício pretendido, como o sacrifício da Antiga Lei, para expiar o pecado e propiciar Deus. Cf. Sanday e Headlam, “Romanos”, 91-94, “A morte de Cristo considerada como um sacrifício”. “É impossível a partir da passagem (Romanos 3:25) livrar-se da ideia dupla: (1) de um sacrifício; (2) de um sacrifício que é propriatório . . . Mesmo muito separado desta passagem não é difícil provar que estas duas ideias de sacrifício e propiação residem na raiz dos ensinamentos não apenas de S. Paulo mas do Novo Testamento de um modo geral”. O duplo perigo desta ideia é, primeiro desejar aplicar ao sacrifício de Cristo todos os modos de ação, real ou suposta, dos sacrifícios imperfeitos da Antiga Aliança; e segundo, acreditar que Deus é agradado por um tipo de efeito mágico, em virtude deste sacrifício, quando ao contrário foi Ele quem tomou a iniciativa da misericórdia, instituindo o sacrifício do Calvário, e dotando-o com seu valor expiatório.
(b) de outra vez a morte de Cristo é representada como uma redenção, o pagamento de um resgate, como o resultado do qual o homem foi livrado de toda a sua servidão do passado (1 Coríntios 6:20; 7:23 [times egorasthete]; Gálatas 3:13; 4:5 [ina tous hypo nomon exagorase]; Romanos 3:24; 1 Coríntios 1:30; Efésios 1:7, 14; Colossenses 1:14 [apolytrosis]; 1 Timóteo 2:6 [antilytron]; etc.) Esta ideia, embora correta, pode ter inconvenientes se isolada ou exagerada. Por levá-la para além do que estava escrito, alguns dos Padres desenvolveram a estranha sugestão de um resgate pago por Cristo ao demônio que detinha as amarras. Outro equívoco é considerar a morte de Cristo como tendo um valor em si própria, independente do Cristo que a oferece e Deus que a aceita para a remissão dos nossos pecados.
(c) geralmente, também, Cristo para substituir a Si mesmo por nós de modo a sofrer em nosso lugar o castigo pelo pecado. Ele sofre a morte física para nos salvar da morte moral do pecado e nos preservar da morte eterna. Esta ideia de substituição atraiu tão fortemente os teólogos luteranos que eles admitiram quantitativa equidade entre os sofrimentos realmente enfrentados por Cristo e as penalidades merecidas pro nossos pecados. Eles até mesmo sustentavam que Jesus sofreu a penalidade da perda (da visão de Deus) e da maledicência do Pai.
Estas são as extravagâncias que lançaram tanto descrédito na teoria da substituição. Foi corretamente afirmado que a transferência de um castigo de uma pessoa para outra é uma injustiça e uma contradição, pois o castigo é inseparável da falta e um castigo imerecido já não é um castigo. Além disso, S. Paulo nunca disse que Cristo morreu no nosso lugar (anti), mas apenas que ele morreu por nós (hyper) por causa dos nossos pecados.
Na realidade os três pontos de vista considerados acima apenas três aspectos da Redenção que, longe de excluir-se mutuamente, devem se harmonizar e combinar, modificando se necessário todos os outros aspectos do problema. No seguinte texto S. Paulo combina estes diversos aspectos com vários outros. Nós somos “justificados gratuitamente por sua graça, tal é a obra da redenção, realizada em Cristo Jesus. Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé. Assim ele manifesta a sua [oculta] justiça; porque no tempo de Sua paciência, ele havia deixado sem castigo os pecadores anteriores. Assim, digo eu, ele manifesta a sua justiça no tempo presente, justificando aquele que tem fé em Jesus Cristo” (Romanos 3:24-26). A seguir são designadas as partes de Deus, de Cristo e do homem:
- Deus toma a iniciativa; é Ele quem oferece Seu Filho; Ele pretende manifestar a Sua justiça, mas é movido a isto pela misericórdia. É portanto incorreto ou mais ou menos inadequado dizer que Deus estava irado com a raça humana e que Ele seria apenas aplacado pela morte do Seu Filho.
- Cristo é nosso Redentor (apolytrosis), Ele é o instrumento da expiação ou propiciação (ilasterion), e é pelo Seu Sacrifício (en to autou aimati), que não se compara àqueles dos animais irracionais; ele deriva o seu valor do Cristo, que o oferece por nós ao Seu Pai através da obediência e do amor (Filipenses 2:8; Gálatas 2:20).
- O homem não é meramente passivo no drama da sua salvação; ele deve compreender a lição que Deus o ensina, e se apropriar pela fé dos frutos da Redenção.
A redenção subjetiva
Tendo Cristo morrido uma vez e ressuscitado, a Redenção está completa na lei e em princípio para toda a raça humana. Cada homem se apropria dela em fato e em ato pela fé e pelo batismo que, unindo-o com Cristo, faz com que ele participe de Sua vida Divina. A fé, de acordo com S. Paulo, é composta de vários elementos; ela é a submissão do intelecto à palavra de Deus, o confiante abandono do crente no Salvador que promete Sua assistência; é também um ato de obediência pelo qual o homem aceita a vontade divina. Tal ato tem um valor moral, pois “dá glória a Deus” (Romanos 4:20) na medida em que reconhece seu próprio desamparo. É por isso que “Abraão creu em Deus, e isto lhe foi imputado em conta de justiça” (Romanos 4:3; Gálatas 3:6). Os filhos espirituais de Abraão são igualmente “justificados pela fé, sem as observâncias da lei” (Romanos 3:28; cf. Gálatas 2:16). Daí se segue:
- Que a justiça é concedida por Deus em consideração da fé.
- Que, todavia, a fé não é equivalente à justiça, já que o homem é justificado “pela graça” (Romanos 4:6).
- Que a justiça gratuitamente concedida ao homem torna-se sua propriedade e inerente nele.
Os protestantes antigamente afirmavam que a justiça de Cristo era imputada a nós, mas agora eles geralmente concordam que este argumento não é bíblico e carece de garantias de Paulo; porém alguns, relutantes de basear a justificação nas boas obras (ergon), negam um valor moral à fé e alegam que a justificação não é mais que um julgamento forense de Deus que não altera absolutamente nada no pecador justificado. Mas esta teoria é insustentável, porque:
- mesmo admitindo que “justificar” significa “proclamar justo”, é absurdo supor que Deus realmente declare justo qualquer um que já não o seja ou que não se torne tal pela própria declaração.
- A justificação é inseparável da santificação, pois esta última é “uma justificação que dá a vida” (Romanos 5:18) e cada “homem justo vive pela fé” (Romanos 1:17; Gálatas 3:11).
- Pela fé e pelo batismo nós morremos para o “homem velho”, nosso antigo eu; sendo que isto é impossível sem começar a se viver como o homem novo, que “conforme Deus, é criado em verdadeira justiça e santidade” (Romanos 6:3-5; Efésios 4:24; 1 Coríntios 1:30; 6:11). Nós podemos, portanto, estabelecer uma distinção na definição e conceito entre justificação e santificação, mas não podemos nem separá-las nem considerá-las como separadas.
Doutrina moral
Uma característica marcante do Paulinismo é que ele conecta a moralidade com a redenção ou justificação subjetiva. Isto está especialmente notável no capítulo 6 da Epístola aos Romanos. No batismo “nosso homem velho é crucificado com [Cristo], para que seja reduzido à impotência o corpo (outrora) subjugado ao pecado, e já não sejamos escravos do pecado” (Romanos 6:6). Nossa incorporação com o Cristo místico não é apenas uma transformação e uma metamorfose, mas uma reação real, a produção de um novo ser, sujeito a novas leis e consequentemente a novos deveres. Para compreender a extensão das nossas obrigações nos basta reconhecermo-nos como cristãos e refletir sobre as várias relações que resultam deste nascimento sobrenatural: da filiação de Deus Pai, da consagração ao Espírito Santo, da identificação mística com nosso Salvador Jesus Cristo, da união na irmandade com os outros membros do Cristo. Mas isto não é tudo. Paulo diz aos neófitos:
“Graças a Deus, porém, que, depois de terdes sido escravos do pecado, obedecestes de coração à regra da doutrina na qual tendes sido instruídos. . . . Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santidade; e o termo é a vida eterna (Romanos 6:17, 22).
Pelo ato de fé e pelo batismo, seu selo, o cristão gratuitamente se torna um servo de Deus e um soldado de Cristo. A vontade de Deus, que ele aceita antecipadamente na medida em que ela seja manifestada, se torna a partir daí a sua regra de conduta. Assim o código moral de Paulo reside por um lado na vontade positiva de Deus dada a conhecer por Cristo, promulgada pelos Apóstolos e virtualmente aceita pelos neófitos em seu primeiro ato de fé e por outro lado, na regeneração batismal e nas novas relações que ela produz. Todas as ordens e recomendações de Paulo são meramente aplicações destes princípios.
Escatologia
(1) A descrição gráfica da parusia Paulina (1 Tessalonicenses 4:16-17; 2 Tessalonicenses 1:7-10) extraiu praticamente todos os seus pontos iniciais do grande discurso escatológico de Cristo (Mateus 24, Marcos 13, Lucas 21). Uma característica comum de todas estas passagens é a aparente proximidade da parusia. Paulo não afirma que a vinda do Salvador está prestes a acontecer. Em cada uma das cinco epístolas, nas quais ele expressa o desejo e a esperança de testemunhar pessoalmente o retorno do Cristo, ele ao mesmo tempo considera a probabilidade da hipótese contrária, provando que ele não tinha nem uma revelação nem uma certeza neste ponto. Ele sabe apenas que o dia do Senhor virá inesperadamente, como um ladrão (1 Tessalonicense 5:2-3), e ele aconselha aos neófitos ficarem prontos sem negligenciar os deveres de seu estado de vida (2 Tessalonicenses 3:6-12). Embora a vinda de Cristo venha a ser súbita, ela será anunciada por três sinais:
- apostasia generalizada (2 Tessalonicenses 2:3),
- a aparição do Anticristo (2:3-12), e
- a conversão dos judeus (Romanos 11:26).
Uma circunstância particular da pregação de São Paulo é que o justo que deverá viver o segundo advento do Cristo passará para a gloriousa imortalidade sem morrer [1 Tessalonicenses 4:17; 1 Coríntios 15:51 (texto grego); 2 Coríntios 5:2-5].
(2) Devido às dúvidas dos Coríntios Paulo trata da ressurreição dos justo só até certo ponto. Ele não ignora a ressurreição dos pecadores, que ele afirmou perante o governador Félix (Atos 24:15), mas ele não se preocupa com isso em suas Epístolas. Quando diz que “os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro” (proton, 1 Tessalonicenses 4:16, grego) este “primeiro” representa, não outra ressurreição dos mortos, mas a gloriosa transformação dos vivos. De maneira semelhante “o mal” dos quais ele fala (tou telos, 1 Coríntios 15:24) não é o fim da ressurreição, mas do mundo presente e o começo de uma nova ordem das coisas. Todos os argumentos que ele apresenta em relação à ressurreição podem ser reduzidos a três: a união mística do cristão com Cristo, a presença dentro de nós do Espírito de Santidade, a convicção interior e sobrenatural dos fiéis e dos Apóstolos. É evidente que estes argumentos lidam apenas com a ressurreição gloriosa dos justos. Em suma, a ressurreição dos maus não entra no seu horizonte teológico. Qual é a condição das almas dos justos entre a morte e a ressurreição? Estas almas desfrutam da presença de Cristo (2 Coríntios 5:8); sua sorte é invejável (Filipenses 1:23); daí é impossível que elas devam estar sem vida, atividade ou consciência.
(3) O julgamento de acordo com S. Paulo concorda com os Sinóticos, está intimamente conectado com a parousia e a ressurreição. Eles são os três atos do mesmo drama que constitui o Dia do Senhor (1 Coríntios 1:8; 2 Coríntios 1:14; Filipenses 1:6, 10; 2:16). “Porque teremos de comparecer diante do tribunal de Cristo. Ali cada um receberá o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito enquanto estava no corpo” (2 Coríntios 5:10).
Duas conclusões derivam do texto:
(1) O julgamento deve ser universal, nem o bom nem o mau devem escapar (Romanos 14:10-12), nem mesmo os anjos (1 Coríntios 6:3); todos aqueles levados a julgamento devem prestar contas pelo uso de sua liberdade.
(2) O julgamento deve ser de acordo com as obras: esta é uma verdade frequentemente reiterada por S. Paulo, a respeito dos pecadores (2 Coríntios 11:15), dos justos (2 Timóteo 4:14), e dos homens em geral (Romanos 2:6-9). Muitos protestantes se espantam com isto e alegam que em S. Paulo esta doutrina é uma reminiscência de sua educação rabínica (Pfleiderer), ou que ele não pôde harmonizá-la com sua doutrina da justificação gratuita (Reuss), ou que a recompensa será em proporção ao ato, assim como a colheita é em proporção da semeadura, mas que não será por causa ou tendo em vista o ato (Weiss). Estes autores perdem de vista o fato de que S. Paulo distinguia entre duas justificações, a primeira necessariamente gratuita dado que o homem era incapaz de merecê-la (Romanos 3:28; Gálatas 2:16), a segunda em conformidade com suas obras (Romanos 2:6: kata ta erga), posto que o homem, quando adornado com a graça santificante, é capaz de mérito assim como o pecador é de demérito. Logo a recompensa celestial é “uma coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, concederá” (2 Timóteo 4:8) àqueles que legitimamente a ganharem.
Resumidamente, a escatologia de S. Paulo não é tão distintiva quanto se fez parecer. Talvez a sua característica mais original seja a continuidade entre o presente e o futuro dos justos, entre a graça e a glória, entre o começo da salvação e a consumação da salvação. Um grande número de termos, redenção, justificação, salvação, reino, glória e especialmente vida, são comuns aos dois estados, ou ainda às duas fases da mesma existência ligadas pela caridade que “jamais acabará”.
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