Dogma do julgamento particular
A doutrina católica do julgamento particular é esta: que imediatamente após a morte o destino eterno de cada alma separada do corpo é decidido pelo justo julgamento de Deus. Embora não tenha sido feita uma definição formal deste ponto, o dogma está claramente implícito no Decreto de União de Eugênio IV (1439), o qual declara que as almas que deixam seus corpos em estado de graça, mas necessitando de uma purificação são limpas no Purgatório, enquanto que as almas que estão perfeitamente puras são imediatamente admitidas à visão beatífica da Glória de Deus (ipsum Deum unum et trinum) e que aquelas partem em estado de pecado mortal, ou meramente com o pecado original, são imediatamente enviadas para a punição eterna, cuja especificidade corresponde aos seus pecados (paenis tamen disparibus). A doutrina também está na profissão de fé de Michael Palaeologus em 1274, na Bula “Benedictus Deus” de Bento XII, em 1336, e na profissão de fé de Gregório XIII e Bento XIV.
Existência do julgamento particular provada pelas Escrituras
Eclesiastes 11:9; 12:1 sq.; e Hebreus 9:27, são às vezes citados como prova do julgamento particular, mas apesar de estas passagens falarem de um julgamento após a morte, nem o contexto nem a força das palavras provam que o escritor sagrado tinha em mente um julgamento distinto daquele que se dará no fim do mundo. Os argumentos das escrituras em defesa do julgamento particular devem ser indiretos. Não há texto do qual possamos com certeza dizer que expressamente afirma este dogma mas há vários que ensinam uma retribuição imediata após a morte e portanto claramente implicam um julgamento particular. Cristo representa Lázaro e o homem rico (n.d.t.: também conhecido como “Dives” em inglês) recebendo suas respectivas recompensas imediatamente após sua morte. Eles sempre foram considerados como figuras do homem justo e do pecador. Ao ladrão penitente foi prometido que a sua alma alcançaria instantaneamente ao deixar o corpo o estado de graça: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lucas 23:43). S. Paulo (2 Coríntios 5) anseia pela libertação do corpo para se apresentar ao Senhor, evidentemente entendendo a morte como sendo a entrada na sua recompensa (cf. Filêmon 1:21 sq.). Eclesiástico 11:28-29 fala de uma retribuição na hora da morte, mas pode se referir a uma punição temporal, tal como uma morte súbita em meio à prosperidade, a recordação dos males que sobrevêm nas desventuras de seus filhos. Contudo, os outros textos que foram citados são suficientes para estabelecer a estrita conformidade da doutrina com o ensinamento das Escrituras. (Cf. Atos 1:25; Apocalipse 20:4-6, 12–14)
Testemunho da Patrística a respeito do julgamento particular
Sto. Agostinho testemunhou clara e enfaticamente esta fé da Igreja primitiva. Escrevendo ao presbítero Pedro, ele criticou as obras de Vincentius Victor sobre a alma, apontando que elas continham nada além do que era vão ou errôneo ou mero lugar comum, familiar a todos os católicos. Como um exemplo desta última afirmação, ele cita a interpretação de Victor da parábola do rico e o Lázaro. Ele escreve:
A respeito daquilo que ele (Victor) muito correta e acertadamente sustenta, a saber, que as almas são julgadas quando se separam dos corpos, antes de chegarem àquele julgamento pelo qual devem passar quando forem reunidas com seus corpos e serão atormentadas ou glorificadas na mesma carne em que habitam aqui — era isso uma coisa da qual você (Pedro) não estava ciente? Quem está tão obstinado contra o Evangelho a ponto de não perceber essas coisas na parábola daquele pobre homem que foi levado após a morte para o seio de Abraão e do rico cujos tormentos são postos diante de nós? (De anima et ejus origine, 11, n.8.)
Nos sermões dos Padres aparecem descrições visuais do julgamento particular (cf. Sto. Efrém, “Sermo de secundo Adventu”; “Sermo in eos qui in Christo obdormiunt”).
Heresias
Lactâncio é um dos poucos escritores católicos que disputaram acerca desta doutrina (Divine Institutes VII:21). Dentre os hereges o julgamento particular foi negado por Taciano e Vigilâncio. Os Hypnopsychites e os Thnetopsychites acreditavam que na morte a alma passava, de acordo com os primeiros para um estado de inconsciência, e de acordo com os últimos para um estado de destruição temporária. Eles acreditavam que as almas ressurgiriam na ressurreição dos corpos para o julgamento. Esta teoria do “sono da alma” foi defendida pelos Nestorianos e Coptas, e mais tarde pelos Anabatistas, Socinianos, e Arminianos. Calvino (Inst. III, 25) defende que o destino final da alma não está decidido até o último dia.
Pronto cumprimento da sentença
O pronto cumprimento desta sentença é parte do dogma do julgamento particular, mas até que esta questão fosse definida pela decisão de Bento XII, em 1332, havia muita incerteza a respeito do destino dos que morriam, no período entre a morte e a ressureição geral. Nunca houve dúvida de que a pena de dano (poena damni), a perda temporal ou eterna das alegrias do Paraíso, começava a partir do momento da morte. Igualmente era admitido desde os tempos antigos que a punição que se seguia à morte incluía outros sofrimentos (poena sensus) além da pena de dano (Justino, Diálogocom Trifão 5). Porém se o tormento do fogo deveria ser incluído entre estes sofrimentos, ou se ele começaria apenas após o julgamento final, era uma questão que deu origem a muitas opiniões divergentes. Foi uma crença comum entre os Padres primitivos de que os demônios não sofrerão com as chamas do inferno até o fim do mundo. A respeito das almas dos réprobos havia uma crença similar. Alguns dos Padres discutiram que estas almas não sofreriam o tormento do fogo até que fossem reunidas com seus corpos na ressurreição, enquanto outros hesitaram (cf. Tert., “De Test. an.”, iv). Muitos, ao contrário, claramente ensinaram que a punição do fogo do inferno se seguia imediatamente ao julgamento particular (Hilário, In Ps. cxxxviii, 22). Isto fica evidente nas palavras de Gregório Magno: “assim como a felicidade regozija o eleito, da mesma forma deve ser crido que a partir do dia de sua morte o fogo consome o réprobo” (Dial., IV, 28). Os primeiros escritores cristãos também faziam referência a um fogo purgatorial no qual as almas imperfeitamente justificadas seriam purificadas após a morte.
Alguns dos Padres da Igreja, enganados pelos erros milenaristas, acreditaram que a beatitude essencial do Paraíso não seria desfrutada antes do fim dos tempos. Eles supunham que durante o intervalo entre a morte e a ressurreição as almas dos justos habitavam alegremente em uma agradável morada, esperando sua glorificação final. Esta foi aparentemente a opinião dos santos Justino e Irineu, de Tertuliano, S. Clemente de Alexandria, e Sto. Ambrósio. De acordo com outros, apenas os mártires e algumas outras classes de santos eram admitidas prontamente à suprema delícia do Paraíso. Não se pode, entretanto, ser inferido destas passagens que todos os Padres citados acreditavam que a visão de Deus estaria na maioria dos casos adiada até o dia do julgamento. Muitos deles em outras partes de suas obras professam a doutrina católica seja expressamente ou de maneira implícita através do reconhecimento de outros dogmas nos quais ela está contida, por exemplo, naquele da descida de Cristo ao Limbo (n.d.t.: ou Mansão dos Mortos), um artigo do Credo que perde todo o seu significado a menos que seja admitido que os santos do Antigo Testamento foram a partir de então liberados desta penalidade temporal de dano e admitidos à visão de Deus. Quanto às passagens que atestam que a suprema felicidade do Céu não é desfrutada até que se dê a ressurreição, eles se referem em muitos pontos a um acréscimo na alegria acidental dos bem-aventurados através da união da alma com o seu corpo glorioso, e não insinuam que a felicidade essencial do paraíso não seja gozada até lá. A despeito das aberrações de alguns escritores e da hesitação de outros, a crença de que desde a morte de Cristo as almas que estão livres do pecado entram de imediato na visão beatífica foi sempre firmemente sustentada pela maioria dos cristãos (cf. S. Cipriano, De exhort. mart.). Como os antigos Atos dos Mártires e Liturgias atestam, os mártires estavam persuadidos da pronta recompensa de sua devoção. Esta crença é também evidenciada na antiga prática de honrar e invocar os santos, mesmo aqueles que não foram mártires. Porém o erro da oposição encontrou adeptos de tempos em tempos, e na Idade Média chegou a a ser calorosamente defendido. O Segundo Concílio de Lyon (1274) declarou que as almas livres do pecado eram imediatamente recebidas no paraíso (mox in caelum recipi), mas não decidiu em quê o seu estado de beatitude consistia. Vários teólogos mantiveram a opinião de que até a ressurreição os justos não desfrutam de uma visão de Deus intuitiva ou face a face, mas que estão sob a proteção e consolação da Humanidade de Jesus Cristo. O Papa João XXII (1316-1334) em Avignon, como um teólogo privado, parece ter apoiado este ponto de vista, mas que ele tenha dado alguma sansão oficial trata-se de uma fábula inventada pelos Falibilistas. Seu sucessor, Bento XII, encerrou a controvérsia através da bula “Benedictus Deus”.
Circunstâncias do julgamento particular de acordo com os teólogos
Os teólogos supõem que o julgamento particular será instantâneo, que no momento da morte a alma separada é internamente iluminada a respeito de sua própria culpa ou inocência e por iniciativa própria toma o seu curso seja para o inferno, ou para o purgatório, ou para o céu (Summa Theologica, Supplement 69:2, 88:2). Em confirmação desta opinião, o texto de S. Paulo é citado: “Eles mostram que o objeto da lei está gravado nos seus corações, dando-lhes testemunho a sua consciência, bem como os seus raciocínios, com os quais se acusam ou se escusam mutuamente. Isso aparecerá claramente no dia em que, segundo o meu Evangelho, Deus julgar as ações secretas dos homens, por Jesus Cristo (Romanos 2:15-16). O “Livro do Julgamento”, no qual todos os feitos dos homens estão inscritos (Apocalipse 20:12), e a aparência de anjos e demônios dando testemunho perante o trono do julgamento são consideradas descrições alegóricas (Sto. Agostinho, Cidade de Deus XX.14). A opinião comum é que o julgamento particular irá ocorrer na hora e lugar da da morte (Suarez in III, Q, lix. a. 6, disp. 52).